O Divino Feminino na terra do Sol Nascente
Àqueles que se dedicam a manter vivas antigas tradições,
que suas vozes sejam respeitadas.
que suas vozes sejam respeitadas.
Deixe-me compartilhar com você o Segredo do espelho [...]
[...] Que libertará você da escuridão.[1]
[...] Que libertará você da escuridão.[1]
No princípio era o Caos, apenas o Uno existindo no Nada. Então, o Uno criou o casal divino, Izanaghi e Izanami, que deram origem por sua vez, às demais divindades do panteão japonês. Esta é a versão mais aceita entre pesquisadores e acadêmicos de história nipônica, porém, encontramos em algumas obras de renome, entre elas a Enciclopédia Britânica uma outra versão da cosmogonia que se refere a cinco divindades primais, Amenominakanushi, Takamimusubi, Kamiusubi, Umashiashikabihikoji, e Amenotokotachi. Dessas divindades surgiram outras sete, que governaram e governam as sete raças humanas. Encontra-se entre elas o casal divino Izanaghi e Izanami, como regentes da nossa civilização. Da abóbada as duas deidades, segundo conta-se, atiraram uma pedra no caótico mar primevo, e ao retirá-la, surge a primeira ilha. Para chegar a nova terra o Casal Divino constrói a “ponte sagrada”, um arco-íris que serve de ligação entre os mundos. Aqui vemos uma semelhança com o mito nórdico do Bifrost, o arco-íris que liga a Terra dos Homens Midgard a Asgard, a Terra dos Deuses, onde se localiza o Valholl, o palácio de Odin, chefe desse panteão. Utilizando-se do arco-íris as duas divindades desceram a Terra e se uniram em matrimônio, dando origem então às demais ilhas que compõem o território japonês. Dessa união surgem também as três principais divindades do Xinto ou Xintoísmo (religião pagã ancestral do Japão) Amaterasu Omi Kami (lê-se Amaterasú Omí Kamí), Isuki Yomí O No Mikoto ou Yomi, e Susano O No Mikoto. Segundo outra versão, a origem de Amaterasu e seus irmãos se inicia após a morte de Izanami, com Izanaghi apenas. Versão que contaremos a seguir.
Logo após o parto, Izanami que havia dado à luz o fogo (o Sol) foi queimada e morta por esse – note-se aqui o aspecto renovador do fogo, pois a morte na maioria das tradições religiosas é apenas um renascimento, O Xinto guarda esse aspecto, que também é encontrado na história ou estória do Cristo, na qual conta-se que sob a Cruz havia grafado a palavra INRI o Fogo Renovador - após ser queimada pelo fogo ou Sol, Izanami desce ao mundo dos mortos – note-se que também entre os nipônicos está presente o Mito da Descida Divina, citando a pesquisadora Teresa Moorey “Muitos mitos falam de deusas arrebatadas para o Mundo Subterrâneo. Esses mitos podem nos ensinar muito”.[2] - para onde Izanaghi segue posteriormente a fim de resgatá-la. Após várias tentativas infrutíferas Izanaghi volta a Terra e purificando-se em um riacho dá origem, sozinho, a Amaterasu e seus dois irmãos, Yomí e Susano O, as três divindades mais importantes do Xinto, que na língua original significa “Via dos Deuses”.
Já em seu nascimento notamos a supremacia de Amaterasu sobre as outras deidades do panteão xintoísta, sendo a única a receber no nome o termo “Kamí”, que se refere aos imortais, semelhante ao Orixá dos Africanos, assim temos em Amaterasu a “Rainha dos Kamí” majestade do Xinto. Para entender melhor o conceito de Kamí utilizamo-nos das palavras do historiador Aston em sua História da Literatura Japonesa:
“O termo Kamí, aplica-se primeiramente às diversas divindades do céu e da terra, mencionadas nos antigos documentos, como também os espíritos, mi-tama, que residem nos santuários onde são honrados”. [3]
Vemos assim que Amaterasu ocupou, desde o início posição proeminente na religião xintoísta, sendo o alicerce da mesma durante os anos da opressão patriarcal do budismo chinês. O Sol, seu símbolo e reino ainda hoje permanecem como símbolo do povo japonês, com sua imagem estampada na bandeira dessa nação, o que nos mostra quão grande é a devoção do povo japonês por essa divindade que desde o início dos tempos permanece inalterada pelas perseguições das novas eras. Amaterasú, o Sol é a luz que resplandece ainda agora no céu japonês, iluminando os caminhos de seu povo e regendo com seus ciclos toda a vida dessa raça. Sendo a rainha do Sol, ela governa as colheitas, alimentando e nutrindo o povo que a elegeu para ser a única Deusa a reger o Astro-Rei, entre todos os panteões de divindades antigos. Essa posição, que desagrada até hoje as opiniões impregnadas de conceitos patriarcais, desagradou também o irmão da deusa, Susano O, que sempre nutriu pela irmã um sentimento de inveja. Conta a história que Susano O sempre possuiu pela irmã, a brilhante Amaterasú uma grande aversão, talvez por ter sido ela, uma mulher a divindade do Sol, que é regido em todos os panteões por deuses “homens”. Na Teologia xintoísta vemos esse personagem obscuro em tramas diversas objetivando prejudicar a irmã. Em uma delas, enquanto Amaterasú estava em seus aposentos Susano O atirou do telhado um cavalo morto sob a cama da deusa, assustando-a de tal modo que ela pôs-se a correr e se escondeu, por fim, dentro de uma caverna. Vemos aqui o cavalo, que sempre foi ligado à fertilidade, como sacrifício necessário para que a Deusa desça ao Submundo para renascer fulgurante, representando o ciclo solar de morte e renascimento, os equinócios e solstícios. O cavalo, peça-chave para o processo de renascimento de Amaterasu liga-se aos touros dos cultos de Mitra e de Átis que também deviam ser sacrificados para que as duas divindades, também solares, pudessem renascer.
O tempo passou e Amaterasú, o Sol, continuava trancada dentro da caverna, privando a humanidade e as divindades da luz solar, logo, as plantas, árvores e os demais seres vivos começaram a perecer, o mundo foi tornando-se cinza, perdendo seu brilho, sua vida. A Terra parecia voltar ao Caos, e mesmo para os deuses tudo aquilo não era suportável, pois sem os mortais, eles deixariam de ser deuses, assim como sem a Sombra, a Luz deixa de existir. Encontramos aqui grande semelhança com o Mito de Deméter e Perséfone, quando pelo rapto da Filha, Deméter desce também ao Submundo e toda a vida no planeta começa desaparecer. Como os olímpicos, os Kamí decidem tomar providências para impedir que Amaterasú continue trancada e reúnem-se todos ao redor do esconderijo da deusa solar. Pondo-se em festa para atiçar a curiosidade da deusa, começam acendendo o Niwabi (fogo sagrado) aspecto ritualístico presente até hoje nos santuários do Xinto. Ao redor do fogo todos os deuses puseram-se a dançar regidos pelo embalo de Uzume, a deusa xamã.[4] Uzume, como sacerdotisa assume aqui o papel de criadora, como Eurínome dançando para criar o mundo, Uzume dança para recriá-lo, para fazê-lo renascer. Após certo tempo de danças e festejos, Amaterasu se sente de tal forma impelida pela curiosidade que se decide a sair de seu esconderijo. Os deuses prostraram em frente à caverna um espelho, que iluminou a deusa quando refletiu sua beleza, encantada com sua própria realeza Amaterasu decide finalmente voltar a Terra, para a felicidade de mortais e imortais.
Como vimos, os mitos xintoístas nos falam de mais de uma cosmogonia e escatologia da Terra, quando pelo retiro do Sol a vida é ceifada, a Terra padece e novamente renasce. O retiro de Amaterasu, em uma caverna, símbolo ancestral da Grande Deusa, Universo obscuro do inconsciente, representa a descida do seres ao seu interior, a Deusa que desce ao Submundo para depois renascer completa e majestosa, preenchida agora com os segredos que nós mortais nos privamos, consciente ou inconscientemente. Quando sai da caverna, Amaterasú retira o “véu de Maya” a ilusão que não permite que vejamos com os olhos da alma, agora onisciente, ela volta ao mundo para reinar sobre mortais e imortais. No mito, o espelho assume caráter de inquestionável valor, permitindo que a deusa possa entrar em contato com suas profundezas, que veja aspectos de si, que até então não havia se permitido. Em tradições pagãs e neo-pagãs, inclusive o Xinto, o espelho é instrumento sagrado utilizado como ligação entre os planos, em processos de magnetização e divinação.
Nesse mito encontramos outro aspecto interessante para o pesquisador/estudioso das religiões da terra. Na fogueira de Uzume, conta-se que os deuses depositaram omoplatas de gamos para serem queimadas e produzirem fagulhas, com as quais eles saberiam com antecedência do resultado da sua empreitada. Cumpre-se notar que o Gamo foi considerado animal sagrado por diversos povos, como símbolo do Sol, o Deus Sacrificado. E o processo de divinação por fagulhas era empregado entre os antigos druidas que também cultuavam o Gamo, e até hoje é empregado por seguidores das diversas vertentes pagãs ainda em voga.
Outra versão que encontramos em nossa pesquisa, fala-nos sobre uma Rede, em lugar do espelho, utilizada para impedir que Amaterasú voltasse à caverna, lacrando-a assim que a deusa solar saísse. A Rede, símbolo do Divino Feminino em diversas culturas faz-se presente também no Xinto, para a felicidade do estudioso de mitologia comparada e para o pesquisador de religiões antigas. Encontramos sobre a Rede como símbolo sagrado da Deusa, um trecho interessante legado a nós por Teresa Moorey:
“A rede também aparece com significado simbólico desde a Era Paleolítica. O Cosmos pode ser visto como uma rede que contém toda a vida. Imagens posteriores mostram deusas fiando ou tecendo a vida num tear, e essa associação prevaleceu até mesmo com a Virgem Maria, que é representada fiando numa pintura do Alto Reno, de cerca de 1400 d.C. [...] Muitas das atividades mais primitivas, como o plantio, a cerâmica, a fiação e a tecelagem, são carregadas de metáforas sagradas, pois nos tempos primitivos todos os processos da vida eram considerados sagrados, todos eram aspectos da Deusa e, em sua maioria, eram praticados por mulheres[...].[5]
A Virgem Maria, como divindade feminina fiando a vida não é exclusividade cristã sendo conhecida séculos antes do nascimento de Cristo, diversas Deusas apareceram fiando e tecendo, entre elas Ix Chel na América do Sul, As Moiras gregas tecendo e cortando os fios da vida, e também as Nornes escandinavas, em semelhança às suas parentas helênicas. Na mesma região do Mar do Norte, encontramos a lenda de Fenrir, o lobo que devora o Sol, sendo aprisionado por uma Rede, construída segundo alguns pelos elfos, segundo outros pelos próprios deuses. No mito japonês, a Rede utilizada para lacrar a caverna, ou prender o lobo, foi também tecida pelos deuses.
Para o estudo profundo de Amaterasú e seu panteão, assim como da primitiva cultura japonesa, existem duas grandes obras, são elas o Kojiki e o Nihonghi, escrituras que remontam ao início da era cristã, e que, como todos os documentos antigos recorrem a mitos e lendas para ilustrar seus ensinamentos. Para o pesquisador, que deve procurar assemelhar seus pensamentos e sentimentos ao dos povos estudados, essas obras são de profunda importância. Nos dois trabalhos, encontramos variadas informações sobre a religião e a cultura nipônicas, entre elas sobre a descendência divina dos membros da casa imperial japonesa. Acredita-se, no Japão, crença corroborada pelas duas obras citadas que a família imperial japonesa é descendente de ninguém menos que a Deusa Solar, Amaterasu Omí Kamí. Antes, porém de falarmos sobre tal crença, a consciência faz-nos um chamado para o lado histórico dos antepassados dos povos japoneses.
Historicamente, os conquistadores ancestrais do povo nipônico iniciaram a ocupação da “Terra do Sol Nascente” pela ilha Kiushu, seguindo para o Norte (ponto cardeal ligado a Terra nas antigas religiões matrifocais e eleito como “frente” pela maioria das civilizações.) em sucessivas batalhas contra os Aino ou Ainu, povos que posteriormente foram ligados na mitologia a Susano O, inimigo da Deusa Solar, e de seu povo, o que fica atestado aqui. Esses conquistadores trouxeram consigo a crença na deusa Amaterasú, e conforme avançavam à suas conquistas, impunham suas crenças aos povos dominados, em uma prática comum de ligar seus chefes de estado à divindade reinante e, portanto, diminuir a resistência dos seus vassalos. Essa prática de ligar a Casa Real à Divindade Maior do panteão, geralmente solar, é uma constante entre os povos antigos, entre eles os egípcios que acreditavam que o Faraó fosse o Filho de Rá, o Deus-Sol. Assim vemos que ligar à Casa Imperial a Amaterasu foi apenas uma manobra política do Chefe de Estado, e que, se essa ascendência é real, nós não podemos confirmá-la, como talvez ninguém o possa.
Segundo o Kojiki, após sair da caverna, Amaterasú volta com os demais deuses para o reino divino e decide enviar seu neto, o jovem Nihighi para governar a terra dos homens. Na mesma obra encontramos o local da descida de Nihighi, justamente a ilha de Kiushu, o que vem corroborar com nossa opinião. De Kiushu Nihighi inicia a criação de sua prole, avançando territórios e espalhando o culto a Amaterasu, conhece uma jovem e a toma como esposa. Dessa união, o Grande Rito dos antigos celtas, nascem Jimmu Tennô ou Jin Mu Tennou que funda o reino de Yamato, antigo nome do Japão. Esse bisneto de Amaterasú, segunda acredita-se é o tronco da árvore genealógica da Casa Imperial japonesa.
Entre 552 e 621 d.C. tem início o declínio do culto a Amaterasú e aos demais Kami devido à expansão do pensamento patriarcal do budismo chinês. Um aspecto que contribuiu para tal foi a pouca rigidez dos cultos xintoístas, que como todos os cultos pagãos possuem uma certa liberdade e pobreza de dogmas. Esse aspecto foi fundamental para o predomínio do complexo sistema religioso do budismo chinês, que veio a calhar com a entrada da nova era patriarcal na religiosidade humana. Era talvez, um mal necessário.
Entre os responsáveis pelo declínio ao culto de Amaterasu, vemos um membro da própria casa imperial, Shôtoku Taishi, durante a regência da imperatriz Suiko. A influência de Shôtoku durou toda essa regência, ou seja, de 593 a 621 d.C. Para pagar os préstimos de Shôtoku, o budismo o tornou, após sua morte, um ascensionado. Negociata com saldos positivos para ambos os lados. Nessa fase de expansão o budismo, a semelhança do que fez o cristianismo no ocidente, sincretizou os antigos deuses xintoístas, tornando-os avatares da nova crença, ou apenas faces diversas de Buda.
Durante a fase de dominação do budismo, que durou até 1700 d.C. crenças dogmáticas, costumes ortodoxos e todo tipo de influência do patriarcado se estabeleceram sobre o Japão. As leis e regras observadas na natureza, únicas normas seguidas pelo Xinoó arcaico foram esquecidas e um complicado conjunto de leis e regras antes desconhecidos se firmaram no antigo reino de Izanami. O resultado do sincretismo entre o Xinto e o Budismo, fez nascer uma nova religião, chamada de Ryôbu-Sinto, que mesclou crenças das duas tradições anteriores, semelhante ao ocorrido com o Candomblé africano e o Cristianismo católico no Brasil, dando origem à Umbanda.
A partir de 1700 d.C., mesmo período da Revolução Francesa e das ideias iluministas inicia-se no Japão um movimento nacionalista, dedicado a resgatar os antigos aspectos primais do povo japonês, entre eles, sua religião e sua antiga deusa solar, Amaterasú Omí Kamí, a Rainha dos Kamí.
Sendo a mãe do povo japonês, Amaterasu nunca foi esquecida por completo, mesmo nos anos mais duros da influência budista, era o Solis Invicti para os romanos, a Deusa Invencível, e entre os camponeses sua presença sempre foi constante. Nos grandes centros, Amaterasú apenas adormeceu no leito do tempo, assim como o culto ao Divino Feminino em toda a terra. A sociedade e o pensamento coletivo passaram por uma nova fase, em que aspectos femininos de justiça e comunidade não eram mais úteis, tendo a humanidade que passar por novas experiências que apenas o patriarcado podia proporcionar. Porém, assim como adormeceu, o culto à Grande Mãe renasce e levanta do mesmo leito em que havia adormecido, a conexão com o eu interior, com aspectos femininos da sociedade tornou-se constante, e não apenas entre os nipônicos, mas entre todos os povos, o que se comprova pela atual busca por antigas tradições e crenças.
O movimento nacionalista japonês teve seu início histórico entre a classe intelectual japonesa, principalmente entre os acadêmicos que mantinham contato com a casa imperial. Um dos maiores líderes desse movimento foi um homem conhecido como Motôori que viveu de 1730 a 1801. Seguidor devotado da deusa solar e do xintoísmo primitivo dedicou sua vida à defesa de suas crenças e sua obra, o Kojidi-Ken, que se constitui em um grande material histórico e religioso dividido em 44 volumes e com inúmeras citações e dedicações à sua amada deusa, Amaterasú, Rainha dos Deuses e dos Homens. Sua obra e sua devoção por Amaterasú podem ser atestadas entre suas inúmeras falas, entre as quais selecionamos uma que muito nos impressiona pela segurança do autor:
“Quem pode duvidar de que Amaterasú seja a augusta antepassada dos Mikados, e que na realidade não seja senão o Sol do céu que ilumina o mundo!?”
Nos parecem palavras de um fanático apaixonado, mas quem são os loucos senão certos em um mundo errado? “Amo aquele que deseja o impossível” nos disse Goethe, isso basta-nos para outorgar a Motôori seu lugar na história.
Em 1868 a revolução devolve o poder absoluto ao Mikado, e expulsa do Japão muitas autoridades de origem chinesa, templos e mosteiros budistas são destruídos, e busca-se eliminar todas as influências estrangeiras, porém, um milênio de dominação basta para fazer morrer muitas crenças. A revolução, porém, procurou o resgate de todos os aspectos que se tinha conhecimento, a arquitetura voltou-se aos antigos moldes xintoístas de bucolismo e simplicidade, a literatura procurou exaltar o velho culto e o Japão passou então por grandes transformações.
Aqui sentimo-nos obrigados a olhar novamente pelo olhar de Maat, a deusa da justiça. Durante o movimento nacionalista como já foi dito, inúmeras obras de arte, esculturas e templos foram destruídos, sendo que nisso, os nipônicos assemelharam-se muito aos budistas e cristãos, em seu desrespeito à arte e à história. Incontáveis peças de valor histórico e religioso foram perdidas, e o prejuízo para a arte, e a história foram grandes. Não nos cumpre, porém, o papel de juízes, e não pretendemos tampouco reprimir qualquer manifestação social, o tempo cria suas eras e o mesmo tempo as destrói, utilizando como instrumento a mão do homem, e a justiça dos deuses.
Com o apogeu desse movimento o culto a Amaterasú foi novamente impulsionado, e seus festivais voltaram a ser celebrados. Essas festividades observadas em todo o Japão têm como principal festa a conhecida como Setsu-Bun-O (Festival das Lanternas) no dia 4 de fevereiro e 17 de julho. Essas festas, na liturgia xintoísta são períodos de purificação para as pessoas, acredita-se que durante essas datas o poder da luz sobre a escuridão é maior, e diversos ritos para afastar espíritos e forças consideradas negativas são então praticados. No festival chamado Orahai (a grande purificação), diversas expiações e sacrifícios são realizados, sendo que os últimos não são humanos, na maioria das vezes apenas oferendas de frutos e cereais. Esses sacrifícios possuem uma conotação mais psicológica e espiritual do que física. Durante as celebrações os xintoístas devem “morrer” simbolicamente falando, em um processo que muito se assemelha ao retiro de Amaterasú na caverna, para alguns a morte psíquica pela qual devem passar os fieis é a representação do renascimento de Amaterasú, e todos os desentendimentos e rancores passados devem ser esquecidos nessas datas. As oferendas, em sua maioria para Amaterasú são oferecidas de manhã e à tarde, no nascer e no pôr do sol. Durante o Orahai adoradores da deusa solar proferem orações, parte da liturgia xintoísta que são passadas de geração em geração, essas orações são chamadas de norito. Os pedidos mais comuns são relacionados à saúde e purificação, e são dirigidos não apenas à Deusa Solar, como também aos outros kami. Quando se criam novos noritos, as normas ortográficas devem ser as mesmas, para preservar o aspecto antigo e tradicional do culto.
Ao final dessa celebração, o Mikado, Sumo-Sacerdote da deusa Amaterasú declara o povo e a si mesmo purificados de suas faltas. Nas festividades as casas e os templos são enfeitados com fitas coloridas chamadas de Gohei, sendo que nos festivais antigos essas fitas eram atadas a uma vareta, freqüentemente retirada de duas árvores consideradas sagradas para Amaterasú, o Hinoki e o Sakaki. Os templos de Amaterasú e dos demais kamí não são adornados com imagens, pois os nipônicos, assemelhando-se aos celtas antes da influência romana não possuem o costume de representar seus deuses sob formas físicas. Nesses templos são guardados o gohei, um espelho e uma esfera de cristal, sendo que esta última representa a Terra, iluminada pela luz de sua regente, Amaterasú Omí Kamí.
No xintoísmo arcaico os templos dedicados a Amaterasu eram feitos de madeira branca de Hinoki e nenhum ornamento ou peças de metal eram permitidas. Com o desgaste causado pelo tempo, esses materiais foram trocados por outros mais resistentes. Desses santuários dedicados a Amaterasú os mais conhecidos são o de Hachiman e de Inachi, localizados em Kioto, Kompira e Temmangu, em Shikoku e Kiushu respectivamente, o de Izume e, o Santuário Nacional de Ise, localizado na província de Ise. Nesse santuário, duas vezes no nascer do sol e duas no crepúsculo são oferecidos a Amaterasú quatro vasos de água, sal, peixe, legumes, frutos e dezesseis vasos de arroz. Esse procedimento é feito todos os dias, indiferentemente dos acontecimentos exteriores. Em Ise, entre os templos menores, localizamos dois templos principais, o de Naiku e Geku que são destruídos e reconstruídos a cada período de 20 anos, tradição que se iniciou em 673 d.C., na regência do mikado Tenmu.
Os sacerdotes de Amaterasú eram originariamente chamados de Kannushi (possuidores da divindade) e eram funcionários do Estado, membros da elite econômica e geralmente possuíam ligações de sangue com a família do mikado. Atualmente esses sacerdotes são conhecidos como Jin Kwan, e não possuem mais o caráter aristocrático primitivo.
A primeira sacerdotisa da Deusa Amaterasú, conta a tradição, foi a jovem filha do imperador Suinim por volta da década de 20 a.C. e desde então a posição de Suma-Sacerdotisa do santuário de Ise vem sendo ocupada por uma filha, ou na falta dessa, sobrinha ou neta do imperador. Ficam também sob os cuidados dessa sacerdotisa o Espelho, o Colar, e a Espada de Amaterasu, que segundo a tradição, vieram com Ninighi, quando este veio para governar a terra, e foram dados por ele ao seu filho (?) Jimmu Tennô.
Esses três objetos nos obrigam a fazer uma correlação com a Deusa Tríplice encontrada em muitas religiões antigas e revivida pelos religiosos neo-pagãos. Em algumas religiões com caráter matrifocal acredita-se que a Deusa possua três faces, Donzela, Mãe/Guerreira e Anciã. A Donzela representa a Deusa Virgem, simbolizada pela Lua Crescente. No Colar de Amaterasú temos a representação da Donzela, a deusa dos amores e da sedução. A seguir, na Espada temos a Guerreira, a Lilith antecessora de Eva, Morrigan a deusa-corvo dos celtas. E por último temos o espelho, que nos leva à Anciã, aquela que possui o conhecimento dos mistérios, que foram revelados a Amaterasú quando se viu refletida no Espelho. Conhece a ti mesmo.Talvez essa seja a mensagem que a presença de Amaterasú tem a nos passar.
“E a ti, que buscas me conhecer, eu digo: tua busca e teu anseio de nada te servirão sem o conhecimento do mistério de que se aquilo o que procuras não encontrares dentro de ti mesmo, jamais o encontrarás fora de ti[...].[6]
Observando o astro-rei podemos entender porque Amaterasú é tão importante para os japoneses, ela é o Sol nos dizeres de Motôori, e dessa forma é a vida. É não apenas a personificação do Divino Feminino na terra do Sol Nascente é antes de tudo Amaterasú Omí Kamí, Rainha dos Kamí, Majestade dos mortais e imortais.
Bibliografia
- CHAMBERLAIN, B.H. [translated by]. The Kojiki, Londres, 1883.
- ASTON, W.C. [translated by]. The Nihonghi, Londres, 1896. ____, Shinto, Londres, 1905. ____, A History of Japanese Literatue, Londres.
- KNOX, G.W. The Development of Religion in Japan. Londres, 1907.
- WENCKSTERN, Fr. Von. A Bibliography of the Japanese Empire, Leyde, 1895-1903.
- SATOW, E. Ancient Japanese Rituals. ____, Transactions of the Asiatic Society of Japan. ____, The Revival of Pure Shinto.
- HUBY, José. Cristvs; História das Religiões. São Paulo: Ed. Saraiva, 1941.
[1] MOOREY, Teresa, A Deusa. São Paulo: Ed. Pensamento-Cultrix, 1997, pág. 43. [2] MOOREY, op. cit. p.89. [3] W.C. Aston, A History of Japanese Literature pag. 9 [4] Amy Sophia Marashinsky , O Oráculo da Deusa, Ed. Pensamento-Cultrix São Paulo 1997, pag. 44. [5] MOOREY, op. Cit. p.27. [6] Mirella Faur, O Anuário da Grande Mãe, Ed. Gaia São Paulo 2001, pág. XX
Texto elaborado por: Asgard alessandromelchior@yahoo.com.br Graduando em História Unesp/Franca Iniciado Wiccano de 1º Grau na Tradição Gardneriana Iniciado na Tradição Familiar da Stregheria, La Vecchia Religione
Nenhum comentário:
Postar um comentário