Segundo os antigos egípcios, o mundo surgiu de Nun, um grande oceano primitivo que os sábios identificaram como o rio Nilo, fonte de vida e abundância para todo o Egito. Essa obscura divindade gerou Rá, o supremo deus solar que deu posteriormente ao mundo uma nobre descendência. Dentre esses descendentes estavam Geb e Nut, personificações, respectivamente, da Terra e do céu. Rá, contudo, havia estabelecido desde sempre que Geb e Nut jamais haveriam de se unir para procriar novos deuses, pois ele, como deus soberano, temia a perda do poder absoluto caso essa união viesse a acontecer. Contudo, Rá, pouco previdente, permitira que ambos permanecessem perigosamente próximos um do outro, pois enquanto Geb, personificação masculina da Terra, vivia estirado sobre o leito do mundo, Nut, a deusa ‘celestial, permanecia encurvada acima dele, apoiada apenas nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Durante a longa era em que ambos permaneceram assim, não tiveram outra coisa a fazer senão observarem-se mutuamente.
— Nut, ó minha bela irmã! — disse um dia Geb, tornando coragem para dirigir a palavra a deusa que pendia sempiterna sobre Si. — Não se aborrece de estar o tempo todo suspensa ai no alto? A deusa afastou os longos e sedosos cabelos que lhe pendiam da cabeça, fazendo com que uma chuva fresca de orvalho descesse sobre o corpo estendido do deus. — Não, pois tenho muitas e belas coisas para observar — disse ela, com os milhares de olhos estrelados que lhe recobriam o rosto a faiscarem vividamente. — Mas já que você toca no assunto, demonstrando sua preocupação, não nego que seria um alívio para minhas doloridas costas se pudesse espichá-Ias um pouco — completou ela, dando um ligeiro suspiro de dor.
Geb, feliz por poder prosseguir a conversa, respondeu assim as palavras da deusa: — Ora, e por que näo o faz, se assim manda a sua vontade? — Porque, ao fazê-lo, meu corpo ficaria quase unido ao seu — respondeu a deusa, afetando uma grave preocupação. — Sei eu, porventura, se o descanso de meu corpo não importaria em incômodo para o seu?
— Oh, não, estrelada Nut, por certo que não...! — retrucou Geb, numa precipitação que revelava algo mais que a polidez divina. — Se está cansada de permanecer encurvada como um sublime arco, pode, com toda a certeza, espichar os nervos e tendões de seus delgados braços e de suas distendidas coxas. Nenhum desgosto traria a minha pele sentir a tepidez da sua.
A deusa fez, então, como Geb dissera, e logo seu corpo negramente aveludado espichou-se, dando alívio as suas costas encurvadas e fazendo com que ao mesmo tempo seu tronco descesse quase ao nível da Terra. Um grande suspiro de alívio brotou dos lábios frescos de Nut. Entretanto, a sensação enorme de alivio fez com que não fosse capaz de perceber que seus seios, naturalmente fartos e tornados ainda mais proeminentes pela força da gravidade, roçassem suas pontas, suavemente, no amplo peito do deus estendido.
— Oh, perdão! — disse ela, erguendo-se instintivamente ao sentir pela primeira vez o contato. — Não foi de propósito! — Ora, não foi nada... — disse Geb, um tanto desconcertado também. E assim permaneceram por mais algumas eras — pois naqueles dias primordiais da sedução havia tempo de sobra para a requintada arte da protelação —, ate que Nut pediu licença a Geb, outra vez, para abaixar-se “só um tantinho mais”. O deus alegremente acedeu, e Nut desceu ainda mais o seu corpo, ate seus seios repousarem francamente sobre o peito rígido de Geb. Desta vez, porém, ela não recuou nem pediu desculpa alguma, pois seus olhos cerrados simulavam um sono de fingida inocência. “Que assim permaneçam”, pensou o deus, tacitamente concordante. “Seräo a um só tempo um delicioso prazer e uma amena barreira ao exército rebelado de meus desejos.” Porém, ao sentir o coração da deusa bater de encontro ao seu, percebeu que o escudo macio que os separava se convertera em estímulo, sendo agora um motivo a mais para que se completasse a rebelião nas hostes de seus desejos, solidamente arregimentados e de lanças avidamente enristadas.
Nut foi despertada de seu fingido sono ao sentir que havia agora um segundo ponto de contato entre ambos e que não era ela, certamente, quem o patrocinava, já que seu corpo não havia descido um milímetro de encontro a terra. Num gesto que nem mesmo Bastet, a deusa felina, poderia ter igualado, ela saltou para o alto como uma perfeita gata, indo cair de quatro novamente, acima de Geb, com o ventre contraído ao máximo. — Ora, que atrevido...! — exclamou a deusa dos céus, tão rubra que os pássaros começaram a cantar, imaginando que já era o dia que surgia.
Geb não conseguiu reter uma gostosa gargalhada, que deixou a deusa desconcertada a ponto de não saber como reagir. Mas o riso dele era, afinal, tão puro e despido de malicia que ela, despindo também suas fingidas suscetibilidades, resolveu soltar livremente as rédeas de seu soberano instinto. A bela Nut desceu inteira sobre Geb e assim permaneceram ambos por onze eras inteiras.
— Malditos traidores! — exclamou o deus, fazendo com que o disco solar que lhe ornamentava a cabeça despedisse assustadoras chispas. — São apenas rumores, sublime divindade... — disse o mensageiro, temeroso de que a ira de Rá extravasasse ali mesmo. (Já naquele tempo, sabiam os mensageiros que não raro terminam como vítimas inocentes dos males que anunciam.) O rosto de Rá assumia, cada vez mais, a forma adunca de um falcão, enquanto seus olhos negros e pequenos como contas também pareciam fulgurar sinistramente. — Silêncio, imbecil! — exclamou o furibundo deus, fechando-se em si mesmo. O mensageiro, sem dar-lhe as costas, retirou-se a maneira prudente dos caranguejos, pois sabia que o deus já começara a planejar sua vingança.
“Devo separar esses dois o mais rápido possível!”, pensou Rá. “Como pude ser imprudente a ponto de deixá-los assim tão próximos?” Durante o dia inteiro o deus solar ardeu furiosamente, de tal sorte que o Egito inteiro esteve ameaçado de ser mergulhado em nova e terrível seca. Então, chegando a uma conclusão, decidiu pôr de uma vez o seu plano em ação. — Farei isto pessoalmente! — disse Rá, subindo em sua barca. No mesmo dia, chegou a presença do casal de amantes, que continuavam misturados num gigantesco abraço. — Basta, lúbricos! — disse Rá, dando um grito que ecoou por todo o mundo.
Geb e Nut levaram um grande susto. A deusa ergueu-se, temerosa da ira de Rá. — De hoje em diante, ficarão os dois inteiramente separados! — disse o deus, dando a voz o tom solene dos decretos irrecorríveis. — Oh, não! — exclamou a deusa, levando as mãos a cabeça.
— Durante o ano todo Chu, seu pai, estará colocado entre vocês e seu descansado amante, para impedir que ambos voltem a ser um só! Chu, o deus do ar, imediatamente foi postar-se entre Geb e Nut. Com seus braços suspendeu o corpo de Nut ate deixá-lo inteiramente fora do alcance das sedentas mãos do infeliz amante. — Oh, Nut, que tristeza não poder mais sentir seu corpo colado ao meu! — lamentou-se Geb, prostrado sob os pés do deus aéreo. Rá ordenou aos remadores de sua luminosa barca que se mexessem, pois já se aproximava a hora dele mergulhar de novo no misterioso Amanti, o reino das trevas, no qual ingressava ao final de cada dia.
Durante muito tempo a pobre Nut permaneceu suspensa sobre os braços do incansável Chu, a lamentar seu negro fado. Sitas lágrimas desciam noite e dia até provocar uma verdadeira inundação sobre o corpo de Geb. — Perdoe, meu amado — dizia ela, com a cabeça inclinada, a olhar tristemente para o deus —, mas não posso conter minha tristeza! Chu, o deus do ar, permanecia impassível, a manter a deusa suspensa sob suas mãos. — Melhor faria se pensasse em outra coisa — disse-lhe, enfim, o deus aéreo. — Como espera que o faça, cruel sentinela? — disse a chorosa deusa. — Graças a seu servilismo abjeto e que estou impossibilitada de pensar em outra coisa! Veja, ali está Geb, meu belo e adorado irmão! Se pudesse outra vez estreitá-lo em meus braços já não precisaria mais pensar em coisa alguma. — Basta, insensata! — exclamou Chu, com um grande sopro. — Bem sabe que aqui estou para impedir a consumação de seus amores proibidos! De repente, porém, Nut lembrou das palavras do poderoso Rá: “Durante o ano inteiro Chu estará vigiando-a!”. Somente então deu-se conta de que não sabia o significado da palavra “ano”. Quis perguntar a Chu, mas achou melhor buscar a resposta em outro lugar.
— Está bem, meu pai, acato suas palavras — disse a deusa, parecendo subitamente conformada. — Permita, apenas, que eu faça uma visita a Thot, o mais sábio dos deuses, para que ele termine de suavizar as minhas penas. O deus do ar, após vacilar um pouco, terminou concordando. — Desde, é claro, que esse tratante permaneça aos meus pés! — acrescentou com frieza, referindo-se ao pobre Geb.
Nut aceitou e partiu no mesmo dia era uma visita a Thot. Assim que chegou a presença do deus da grande cabeça de íbis, a deusa prosternou-se. — Sábio Thot, permita que desfrute um pouco de sua proveitosa companhia. O deus estava sentado de pernas cruzadas sobre uma esteira trançada com fibras de ouro. De cabeça baixa, estava todo entregue a tarefa de redigir num papiro os seus intrincados hieróglifos. Apesar de ter feito um vago sinal de assentimento para que a visitante se aproximasse, continuou tão absorto em sua tarefa que seu compridíssimo bico negro quase encostava no papiro estendido em seus joelhos.
— Por que não usa, em vez do caniço afiado, a ponta adunca de seu longo bico para redigir os hieróglifos? — disse Nut, tentando dar um tom descontraído a visita. Thot, porém, ignorou solenemente o gracejo. Na grande sala escutava-se apenas o risque-risque intermitente do caniço a raspar sobre o papiro desenrolado. Estaria o deus engendrando alguma nova invenção? Depois deter inventado a escrita, a álgebra, a geometria e a astronomia, o que mais seu cérebro fecundo estaria prestes a parir? — O que está inventando agora? — perguntou a deusa do céu. Depois de um longo silêncio, Thot ergueu a cabeça e disse: — Estou terminando o calendário. — Calendário?... O que é isso? — Uma inédita maneira de se medir o tempo — disse o deus, tornando-se finalmente receptivo. — Com este sistema poderei ultrapassar o antiquado método de se contabilizar o tempo por meio da mera alternância do dia e da noite. — Oh, näo haverão, então, mais dias e noites? — indagou Nut, algo confusa. — Claro que sim — disse Thot, com um sorriso indulgente.
— Apenas o tempo deixará de ser contado de maneira tão simplória. Nut deu um sorriso respeitoso, embora, no seu intimo, não entendesse que necessidade havia de se complicar o velho método. “Um sistema tão simples e perfeito!”, pensou ela, desconfiando um pouco da exagerada sabedoria do confrade.
—O tempo ficará, doravante, dividido em anos — explicou melhor Thot. — Cada ano, por sua vez, será composto de 360 dias e noites ajuntados. Então, de repente, Nut teve uma luminosa idéia. — Escute, Thot... Estaria disposto a um jogo de dados, para relaxar? — Dados?! — disse Thot, subitamente animado. — Está bem, vamos. O jogo de dados (também uma invenção sua) era o seu passatempo predileto. O deus simplesmente perdia a cabeça toda vez que lhe propunham um desafio. — Aquele que perder deve um pedido ao outro, está bem? — disse Nut, ajeitando-se sobre a esteira.
— Naturalmente, é o que diz a regra 934 do manual do “Maravilhoso jogo de dados de Thot” — retrucou o deus, de maneira pedante, já que era autor também das milhares de regras que inventara para o jogo. A disputa começou e logo Nut deu um jeito de passar a perna em Thot, pois, se ele era inventor, ela não lhe ficava atrás. — Ganhei! Ganhei! — exclamou Nut, pulando de alegria. Thot rilhava o grande bico negro, sem entender como conseguira ser tão vergonhosamente tapeado. — Vamos, o meu pedido! — disse Nut, imperativamente. — Pedido...? — resmungou o deus, que nunca tivera tanta cara de íbis como então. — Ora, esqueceu a regra 933? —934...! — Pouco importa! Tenho ou não direito ao meu pedido? O deus cerrou seu longo bico negro e resmungou quase inaudivelmente: — Está bem. Faça-o de uma vez. — E simples: quero que acrescente cinco dias ao seu calendário.
—Mas... Por quê? — Não interessa, apenas acrescente os cinco dias. Toth resmungou mais um pouco, mas acabou cedendo, afinal. Quando chegou o 361° dia, Chu — o deus do ar encarregado de manter separados o casal Nut e Geb — foi obrigado a se afastar, já que sua missão se limitava a vigiar o casal durante os 360 dias que compunham o ano. — Os próximos cinco dias não fazem parte de ano algum; portanto, dê o fora daqui — disse Nut, desvencilhando-se dos braços de Chu, que não teve outro jeito senão abandonar o seu posto.
— Finalmente a sós outra vez! — disse Nut, lançando-se aos braços de seu amado. O produto desses longos cinco dias de amor surgiu sob a forma de quatro filhos: dois homens e duas mulheres. Osíris, o primogênito, era alto e tinha a pele escura (de resto, como a de todos os egípcios). Dizem que no instante de seu nascimento uma grande voz ressoou no templo de Toth, em Tebas, profetizando o seu futuro glorioso, embora também um grande infortúnio. Seth, o deus ruivo que nasceu logo após Osíris, seria a causa de sua desgraça. A bela Isis e a pouco expressiva Néftis vieram logo depois. Tão logo Rá tomou conhecimento do nascimento das quatro novas divindades, compreendeu que seus dias de glória estavam no fim, e que, muito em breve, deveria se retirar do trono do mundo, deixando-o a cargo de Osíris, o deus que, após reinar entre os vivos, iria reinar também entre os mortos.
Extraído do Templo de Apolo
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