(Retirado dos Livros Mistérios Wiccanos de Raven Grimassi e Wicca, A Religião da Deusa de Claudiney Prieto).
Em tempos remotos, a lei “só os mais fortes sobrevivem” era uma realidade verdadeira e comum. Hoje, graças à medicina moderna e à tecnologia, nossa sociedade mantém vivos aqueles que a Natureza permitiria morrer. (Isso não é um julgamento, mas uma simples observação.)
No sistema das tribos primitivas, os caçadores e os guerreiros possuíam papel importante na estrutura social. Os mais valentes e argutos dentre eles eram honrados pela tribo e seguidos como líderes. Em muitos casos, o bem-estar desse indivíduo afetava o bem-estar de toda a tribo. Esse é um tema amplamente explorado no mito norte-europeu do Rei Arthur. Merlin diz a Arthur que, caso tenha sucesso, a terra florescerá; caso contrário, a terra fenecerá. Arthur então pergunta: “Por quê?” Ao que Merlin responde: “Porque você é o Rei!” Mesmo atualmente, as doenças de nossos líderes nacionais são minimizadas, eles estão sempre “se recuperando gradualmente”. Para compreendermos essa relação íntima, devemos analisar certos aspectos e conexões. Enquanto Merlin diz a Arthur: “Você é a Terra, e a Terra é você”, prosseguiremos em nossa jornada ao passado para descobrir essas antigas raízes.
Antes que os humanos aprendessem a cultivar plantações e a criar animais, a caça era essencial para a vida. Sem caçadores capacitados, os clãs desapareceriam. A caça era uma atividade perigosa, pois os humanos ainda não haviam se retirado da cadeia alimentar. As armas primitivas exigiam que os caçadores se aproximassem muito da presa, e os ferimentos pessoais eram corriqueiros. Muitos caçadores perderam a vida ou ficaram incapacitados como resultado da caçada. Com o tempo, o caçador passou a guerreiro, arriscando sua vida pela tribo. As necessidades da tribo fossem por alimento ou por defesa, exigiam o envio de melhor caçador ou guerreiro existente na tribo.
Com o passar do tempo, esse conceito evoluiu com a consciência religiosa e espiritual da humanidade. O conceito de Deidade, bem como seu papel na vida e na morte, tomaram forma em meio a rituais e dogmas. Consequentemente, surgiu a ideia de enviar o melhor elemento da tribo diretamente aos deuses para assegurar favores. Essa foi à origem do sacrifício humano (acreditava-se que os que se apresentavam voluntariamente acabavam por se tornar eles mesmos deuses).
As oferendas não eram novidade para nossos ancestrais; muitas vezes alimento e flores ou caçaram depositados perante os deuses. Um semelhante era considerado a maior oferenda que uma tribo poderia fazer. Entre as oferendas humanas, o sacrifício de um voluntário era a possibilidade máxima. Certamente, acreditavam-se, os deuses garantiriam à tribo qualquer coisa se alguém desejasse abrir mão de sua vida.
Em seu livro Western Inner Working (Weiser, 1983), William Gray aborda diversos aspectos desse tema do Culto. Um deles está relacionado ver com linhagens sanguíneas. Ele escreve:
Algo os impelia a Deidades, não o medo, tampouco a busca por favores, mas eles sentiam um grau de afinidade entre eles próprios e os invisíveis Imortais. De modo extremo, eles percebiam que eram aparentados à distância desses Deuses, e queria fortalecer tal relacionamento. Essa faceta em membros específicos da raça humana apresenta uma certa prova de linhas genéticas que remontam ao “Antigo Sangue” que se originara de fora da própria Terra.
Gray também demonstra como os reis e governantes acabaram por ser sacrificado (por serem os “melhores” do clã) e como as linhagens sanguíneas eram importantes. Os regentes da antiga Roma e do Egito eram considerados por seus povos os descendentes dos deuses, ou eram eles mesmos deuses.
“O Culto ao Reinado” por Gray oferece um relato de como o sangue e a carne eram distribuídos para o clã, e para a terra. Partes do corpo eram enterradas em campos cultivados para assegurar a colheita. Pequenas porções do corpo e do sangue eram adicionadas ao banquete sobre o qual Gray escreve:
Eles concediam ao finado líder o mais honroso sepultamento possível – em seus estômagos.
Esse tipo de mitologia também pode ser encontrado na mitologia cristã, onde o corpo de Jesus é o centro do rito da comunhão. Após o fim de tais práticas, Gray nota que o costume perdurou na forma de cremação em uma pira funerária.
No mito do Rei Divino/Deus Sacrificado, o sacrifício é apenas uma parte da história. Sacrificar é enviar o que temos de melhor, mas e quanto a recuperá-los? Nos versos da Arte, temos uma passagem onde se lê: “. e devemos encontrá-los, reconhecê-los, relembrá-los e amá-los novamente”. Para tanto, foram criados rituais que ocasionassem o renascimento desses Deuses Sacrificados onde às linhagens eram cuidadosamente estudadas. Donzelas especiais eram preparadas para carregar o rebento, geralmente virgens artificialmente inseminadas para que nenhum pai humano fosse conhecido.
Com a evolução e o amadurecimento da consciência humana, os sacrifícios humanos foram substituídos por sacrifícios animais (o ritual do bode expiatório) e posteriormente para sacrifício vegetal. O mesmo mito se aplica ao sacrifício vegetal, e encontramos a “Deidade comida” no pão e vinho (carne e sangue) dos rituais da Arte. Apesar do significado e da preparação terem se perdido em muitos dos sistemas reconstruídos, eles ainda são preservados por muitas das Antigas Tradições da Wicca.
Na antiga tradição, era através dessa conexão com o corpo e o sangue do Deus Sacrificado que as pessoas se integravam com a Deidade. Esse é basicamente o conceito do rito cristão da comunhão ou da Celebração da Eucaristia. Na “Última Ceia”, Jesus declara a seus seguidores que o corpo e o vinho são seu corpo. A seguir, ele afirma que abrirá mão de sua vida por seu povo, e pede-lhes que comam de sua carne e bebam do seu sangue (o pão e o vinho).
Acreditava-se que o sangue continha a essência da força vital. A morte do rei libertava o sagrado espírito interior, e através da distribuição de sua carne e de seu sangue (às pessoas e a terra), uniam-se a terra e o paraíso, e essa energia vital renovava o Reino. Resquícios dessa prática ainda podem ser claramente observados na Antiga Religião, apesar de estarem velados e altamente simbólicos.
O Rei Divino/Deus Sacrificado surgem em vários aspectos no desenrolar das eras. Sua imagem se manifesta como o Jack-in-the-Green, o Hooded Man, O Green Man e o Hanged Man (Enforcado) do tarô. Ele é o Senhor das Plantas, ele é a Colheita e, em seu lugar da Mãe Terra, tampouco usurpa seu poder – ele é seu complemento e seu consorte.
A imagem do Green Man provavelmente simboliza da melhor forma possível o Rei Divino/Deus Sacrificado. Ele é o espírito da Terra, manifesto em todas as formas vegetais. Ele é o poder pro criativo e a semente da vida. Sua face é oculta pela folhagem, mas ele está sempre atento. O Green Man representa a relação do homem com a Natureza. O escritor William Anderson, em seu livro The Green Man, diz:
Ele resume em sim mesmo a união que deve ser mantida entre a humanidade e a Natureza. Ele é o próprio símbolo da esperança: afirma que a sabedoria do homem pode se aliar às forças instintivas e emocionais da Natureza.
Ele é, com efeito, nossa ponte entre os Mundos. Ele está integrado ao Paraíso e a Terra, e integrar-se a ele é integrar-se à Fonte de Todas as Coisas.
O Herói
A trilha do herói não é específica a um determinado sexo. A grande maioria dos mitos e lendas remanescentes associados a heróis envolvem homens. É agora parte de nossa Consciência Coletiva como cultura ocidental, e assim é aqui que abordamos os mistérios. Para onde seguimos depois é por nossa conta. Na Antiguidade, o caminho do herói incluía mulheres; resquícios de heroínas ainda existem em lendas como as de Perséfone e Deméter, Inanna, Ísis e tantas outras. Seja um homem a arriscar sua vida em combate, ou uma mulher a fazê-lo no parto, ambos são atos de bravura dignos do caminho do herói. O caminho do Herói é um de auto-sacrifício pelo bem-estar dos demais.
O herói incorpora os elementos pelos quais a cultura que o criou aspira. O herói preserva o que é nobre, inspirador e valioso para uma sociedade, tudo entrelaçado em contos de Busca, desafio e determinação. Joseph Campbell chama a isso de o feito praticado por muitos. Claramente, percebemos que esses feitos dos heróis de qualquer cultura não diferem dos de outra. Nisso vemos que a natureza do Herói é, sem dúvida, universal na cultura humana.
Nos níveis externos, o Herói abandona a segurança de sua tribo ou aldeia e parte ao encontro de um monstro ou para cumprir uma tarefa, em ambos os casos servindo aos interesses de sua comunidade. Num nível interno, cada um de nós é um herói que deve deixar a segurança do que aprendeu e aventurar-se na Busca por conhecimento. O herói deve deixar uma condição e encarar um desafio, por meio do qual possa elevar sua própria consciência. Em algumas vezes, isso é feito deliberadamente; noutras ocorre quase acidentalmente ou como uma reação simples a uma determinada situação. De qualquer forma, são três os elementos do caminho do herói: partida, realização e retorno.
Nas lendas celtas, o herói é geralmente atraído ao desconhecido por uma criatura qualquer que posteriormente se transforma numa fada ou deusa. A aventura do herói se inicia nesse ponto da história. Nas tradições do Egeu/Mediterrâneo, o herói geralmente parte numa Busca pré-determinada com parâmetros definidos. À medida que a consciência espiritual e intelectual da cultura amadurece, a aventura do herói se transforma com ela. A lenda do Rei Arthur é um excelente exemplo de um mito que evoluiu com a consciência da cultura que o formou. Os aspectos lunares anteriores podem ser posteriormente encontrados disfarçados no simbolismo solar patriarcal.
Na Tradição Misteriosa, encontramos algumas similaridades interessantes entre a espada do Rei Arthur e o cetro do Rei no santuário de Diana no Lago Nemi. Somente uma pessoa com determinados poderes seria capaz de retirar a espada da pedra ou quebrar o galho do carvalho de Nemi. Fazê-lo, em ambos o caso, resultava em soberania. O Carvalho Sagrado representava o deus solar e estava sob os cuidados do Guardião do Bosque. No Lago Nemi vivia uma mágica ninfa da água conhecida como Egeria. Ela era associada ao curso d’água que corria da gruta de Diana ao Lago Nemi, bem como ao próprio lago. Egeria em Nemi e a Senhora do lago associada à lenda celta de Arthur podem ser uma só.
O bem-estar do Rei dos Bosques foi em parte atribuídos a essa relação com Egeria. De acordo com Frazer (em The Golden Bough), o riacho de Egeria brotava das raízes do Carvalho Sagrado de Nemi. O carvalho era a madeira utilizada para aquecer a forja onde espadas eram confeccionadas; o carvalho produz temperaturas mais elevadas que outras madeiras. Assim, o espírito do Deus Carvalho passava às chamas e, por consequência, à espada empunhada pelo Rei dos Bosques. Esse mito pode muito bem estar por trás da lenda celta do Rei Arthur e da espada Excalibur. A espada mágica de Arthur fora incrustada na pedra de onde ele a retirou, e a ele foi devolvida pela Senhora do Lago após ter partido num tolo desafio de combate. O galho partido do Carvalho de Nemi foi um desafio de combate ao Guardião do Bosque. Era parte da árvore enraizada na terra, plena com a água que brotava do riacho de Egeria. Não é difícil perceber que a espada Excalibur sendo erguida do lago e o Galho de Carvalho que surge da Árvore Sagrada do regato de Egeria são a mesma imagem.
Por vezes o herói é mais uma pessoa espiritual do que um aventureiro ou guerreiro. Ele (a) ensina a transformação da consciência que é o verdadeiro objetivo da Busca do Herói. A Busca em si representa as provações e descobertas necessárias para que se obtenha iluminação. Os períodos negros de nossas vidas, representadas no simbolismo mítico pelo aprisionamento no ventre da baleia, são períodos de provação pessoal. Na cerimônia de iniciação do primeiro grau Wiccano, o iniciado deve encarar uma provação e que somente através do sofrimento ele poderá obter o conhecimento e a iluminação.
A água representa a mente inconsciente, e a baleia representa o que se esconde pro trás. É parte importante da Busca do Herói que este encare o monstro. Um elemento comum na maioria dessas lendas é o que o monstro. Um elemento comum na maioria dessas lendas é o que Campbell chama de auxílio sobrenatural. É aqui que o herói recebe algum tipo de arma mística para enfrentar seus inimigos. Arthur retirando a espada Excalibur da pedra é um bom exemplo. O monstro deve ser derrotado para que o herói cumpra sua Busca. Em outras palavras, o herói deve derrotar o que criaturas como os dragões simbolizam (geralmente medo, insegurança ou egoísmo). Uma vez que o dragão não mais bloqueia o caminho (ou guarda o tesouro), o herói então pode prosseguir rumo a seu objetivo.
É dever do herói, tanto interna como externamente, compreender a relação pessoal com a sociedade na qual vive. O herói deve também aprender a relacionar essa sociedade ao mundo Natural no qual ela existe. Ademais, ele deve compreender a relação de tudo isso com o Grande Cosmos. O herói deve começar sua busca por dentro e, assim na Terra como no Céu, ele compreenderá o Macrocosmo através dos exemplos encontrados e solucionados no Microcosmo. É disso que tratam os mitos de todas as épocas desde que os primeiros contos bárdicos foram entoados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário