O arquétipo de Hera perdura em cada mulher que se casa acreditando que o matrimônio é a consumação da satisfação feminina. Fiel, apesar dos maus-tratos de Zeus, ciumenta infatigável que vaga pelos recantos a fim de coletar evidências da lascívia de seu marido, Hera é a deusa privada de todos os seus atributos, exceto do dom da profecia, que exerce através da boca de humanos e de animais para se vingar dos filhos e das muitas amantes de Zeus, muito particularmente de Héracles, o mais odiado de todos. À primeira vista, seu vínculo matrimonial parece uma relação de amor e ódio; porém, na realidade, cultiva a posse com a argúcia das mulheres que, escudadas em seus direitos, espiam, humilham, vigiam, perseguem e chantageiam os homens mediante pressões que começam com prantos sutis e vão-se transformando em ciclos de fúria e recriminações, até coroar com o rancor uma suposta debilidade atribuída à traição.
Padroeira das mulheres casadas, seu mundo adquire sentido em função do esposo. Sobre Hera recaem as virtudes e superstições do protótipo que sustenta o lar com o ideal do marido bem-sucedido, reconhecido por seu poder e notável em seu trabalho. Convencida de que a união matrimonial é sagrada, Hera vive em cada mulher que permanece à sombra do marido, rendida a seus laços indivisíveis, obcecada, magoada e furiosa. Manipuladora, exerce seu mando como adversária na cama, mas ao sofrer a aspereza moral frente a paisagem devastadora provocada por seus ciúmes, suporta o castigo muito mais além do que exigiria o respeito, ainda quando Zeus reconhece sua astúcia para cegá-lo diante de um erro evidente, como ocorre com relação aos heróis homéricos na Ilíada. Sagaz e espertíssima, lança palavras furiosas, jura, promete, ameaça ou afronta com altivez sem par; os outros deuses julgam-na ou intervém em seu relacionamento, seja a favor, seja contra, e sempre acaba rendida à poderosa vontade de seu marido. Contra sua natureza impulsiva, inferior à do belicoso Ares ou à da batalhadora Atena, inferior inclusive à natureza do vigoroso Héracles, Hera opõe uma atitude compreensiva, em conformidade à sua hierarquia, e não é raro encontrá-la representando um papel de intermediadora social, até mesmo quando adota as piores monstruosidades de Equidna ou Tífon, que no momento apropriado seriam utilizadas contra Héracles.
Hesíodo lhe atribui a criação do Leão de Neméia, um monstro invulnerável, nascido dos mesmos Equidna e Tífon, assim como da perversa Hidra, a venenosa serpente aquática de muitas cabeças que vivia nos pântanos de Lema, perto de Argos, a qual, por sua vez daria à luz a Quimera, uma criatura tricéfala de pés ágeis, violenta e tão enorme quanto terrível. Cada vez que uma cabeça da Hidra era cortada, brotava do coto outra ainda pior. Tanto ela como o leão seriam vencidos por Héracles e Iolau, seu companheiro de armas, como parte dos Doze Trabalhos. Iolau queimava em vão os cotos da Hidra com tições ardentes, enquanto Héracles, longe de se dar por vencido, molhava suas flechas no próprio sangue da inimiga a fim de tomar incuráveis suas feridas e derrotá-la junto com o caranguejo que a auxiliava por ordem da deusa. Esmagado pelos pés do herói, o caranguejo acabaria sendo transformado na constelação de Câncer. Quimera, por sua vez, seria mais tarde abatida por Pégaso, colaborando com o valente Belerofonte.
Diferentemente da criminosa Medéia, que assassinou sua rival e a seus próprios filhos antes de abandonar para sempre o marido, Hera se confinava na obscuridade a ruminar seus fracassos ou empreendia longas viagens a fim de recuperar a confiança perdida em consequência de suas torpezas. De volta a seu assento mítico, ali ficava outra vez, entronizada, ciumenta de seus domínios, cuidadosa e furibunda, governando disfarçadamente o marido, conjeturando para confirmar suspeitas, endurecendo as regras de um jogo doméstico astucioso, ofuscada em sua posição e guiada pelos preconceitos da vida em comum, ainda que os fatos provassem que suas atitudes eram a rota mais segura para sua própria infelicidade.
Filha mais velha de Cronos e Réia, Hera nasceu na ilha de Samos, onde Cronos devorava vivos a seus filhos assim que saíam do ventre sagrado, para que nenhum deles pudesse obter a dignidade real que ele ostentava sobre os imortais. Seu pai, o estrelado Urano, e sua mãe, a Terra, haviam profetizado que um de seus descendentes o destronaria. Em seu destino já estava pré-traçada a condenação de sucumbir pelas mãos de Zeus e, sempre ã espreita e com a mente astuta, o Tempo devorava um após o outro seus filhos assim que Réia os dava à luz, até que, antes de parir o último deles, o grande Zeus, a deusa buscou a proteção de seus pais para salvá-lo. Abrigada pelo cair da noite, Réia foi enviada por Urano e Gaia à terra de Licto, onde nenhuma criatura projeta sombras, para que pudesse parir e ocultar o recém-nascido em uma caverna escarpada rodeada por árvores, nas faldas do monte Egeu, de onde se atingiam as entranhas da Terra.
Ali, depois de ser banhado no rio Neda, o pequeno Zeus permaneceu em Creta, vigiado pela avó, onde foi criado com leite e mel em um berço de ouro pela ninfa-cabra e pela ninfa-freixo, ao lado do cabrito Pan, seu aliado e irmão adotivo. Sua infância transcorreu em meio a hábeis artimanhas para que seu pai não o encontrasse, e dali só saiu quando finalmente se achava preparado para vencê-lo.
Vítima da argúcia de Réia, Cronos engoliu uma pedra envolta em lençóis crendo, assim, que triunfaria sobre os ditames do Destino. Porém, descobriu o logro e pôs-se a perseguir o menino durante o mítico rastreio que não chegou a um término até que Zeus, disfarçado de seu copeiro e seguindo os conselhos de Métis, misturou sal e mostarda à sua bebida doce para que vomitasse, ilesa, a multidão de filhos que o Tempo conservava em seu estômago. Foi essa pedra emblemática, antes mesmo que seus irmãos e irmãs mais velhos, a primeira coisa a ser expelida por Cronos durante sua legendária náusea, e a que definiu a posterior batalha contra os Titãs, que entronizou os olímpicos, a segunda e mais perdurável geração de deuses.
Logo a seguir, por haver libertado os ciclopes que Cronos havia confinado no Tártaro, estes recompensaram a Zeus com o trovão, o relâmpago e o raio, até então ocultos entre as "rugas da Terra", ou de Gaia. Hades deu-lhe o elmo da invisibilidade e Poseidon ofereceu um tridente àquele que viria a ser o Pai do Céu. Os gigantes de cem braços, no mais aceso da batalha, lançaram pedras contra os demais titãs, e os gritos do cabrito Pan puseram-nos em fuga para selar a vitória.
Desterrados para uma ilha longínqua, os titãs nunca mais vieram perturbar a Hélade, porque Atlas, seu general, foi condenado a carregar o firmamento nas costas, um castigo exemplar. Zeus, por sua parte, apoiou-se em seus dons supremos a fim de governar sobre mortais e deuses, e fez venerar a pedra sagrada no santuário de Delfos, onde se afirma que permanece até o dia de hoje.
Onde termina o mito de Cronos - que eleva o de Zeus -, começa o de uma Hera que não era ninguém até que se casasse com o Pai dos Céus. Dela se diz que suas amas foram as estações do ano e que, na Arcádia, foi educada por Temeno, o filho da terra Pelasgo, ou Antigüidade. Talvez tenha sido em Cnossos, ou no cume do Thornax, na Argólida, que Zeus a tenha cortejado, disfarçado de cuco, uma ave trepadora que costuma colocar seus ovos nos ninhos de outros pássaros. Ardiloso e matreiro, tal como perdiz arrastava-se graciosamente sobre o solo, ocasião em que ela acalentava-o em seu seio. Hera conversava com ele e lhe confiava seus sonhos até que, de repente, Zeus assumiu sua verdadeira forma para violá-la, enchendo-a de vergonha e desespero.
No caso típico da jovem que, em meio a atrozes conflitos sentimentais tem de se casar para compensar a perda de sua virgindade, Hera, uma donzela idealista, se converte em esposa e mãe por excelência. Apesar da fúria de Réia, que previa muito bem a luxúria de seu futuro genro e que, por opor-se à união, foi também violentada por Zeus - desta vez sob a forma de uma serpente -, todos os deuses vieram com presentes para participar dos esponsais. De Gaia, recebeu a célebre árvore das maçãs de ouro, que Hera plantou em seu jardim, no monte Atlas, para ser vigiada pelas Hespérides. Foi devido a uma dessas maçãs, atirada com raiva por Éris entre as deusas rivais, que surgiu a expressão "pomo da discórdia", citada pela primeira vez nos cantos de Homero, em um dos episódios centrais da Guerra de Tróia.
Hera e Zeus passaram sua noite de núpcias na ilha de Samos. Foi uma longa noite de trezentos anos, semeada de altercações, intrigas e humilhações recíprocas, da qual Hera saiu para se banhar, buscando recuperar a virgindade na fonte de Canatos, que ficava nas proximidades de Argos, onde foi erguida uma estátua em que aparecia sentada em um trono de ouro e de marfim. Em meio a certas dúvidas sobre a origem verdadeira da gravidez de Hera, o mito a atribui ao fato de a deusa ter tocado em uma determinada flor; dela nasceram Ares, o deus da guerra, e talvez também sua irmã gêmea, Éris, a Discórdia. Daí também nasceu Hefestos, o padroeiro dos ferreiros, caldeireiros e oleiros, que mais tarde aprisionou sua mãe Hera em um engenhoso trono, com braços que se fechavam a seu redor, porque não acreditou que ela o houvesse gerado sozinha, sem a intervenção direta de Zeus. A deusa permaneceu em cativeiro até que Dionísio embriagasse o coxo Hefestos e o levasse de volta ao Olimpo para que libertasse Hera e se tornasse seu aliado a partir de então. E nasceu ainda Hebe, a mais moça e associada, por sua concepção peculiar, a uma alface, que foi copeira dos olímpicos até casar-se justamente com Héracles.
Cansada dos petulantes excessos de Zeus, Hera conspirou contra ele com Poseidon, Apolo e os demais olímpicos, com exceção de Héstia, acreditando-se superior ao Pai dos Céus tanto em argúcia como em autoridade. Surpreendendo Zeus adormecido em seu leito, os rebeldes imobilizaram-no amarrando-o cem vezes com cordas de couro cru, pretendendo dar um golpe de Estado. Tendo dominado e escondido o raio, celebraram seu triunfo com insultos e troças, sem dar escuta às ameaças do Pai dos Céus. Mas enquanto deliberavam sobre o nome de quem deveria tornar-se seu sucessor, a discussão foi ficando cada vez mais acalorada, os ânimos da família divina foram-se exaltando e sobrevieram contendas tão ferozes que chegaram a fazer tremer o Olimpo. A prudente Tétis previu o estourar de uma guerra civil e, para evitar a catástrofe, correu em busca de Briareu, um dos gigantes, para que viesse em seu socorro e empregasse simultaneamente seus cem braços a fim de desamarrar o cativo antes que os demais deuses pudessem acorrer para impedi-lo.
Por haver encabeçado a conspiração, Zeus pendurou Hera no firmamento com um bracelete de ouro em cada pulso e uma bigorna pendente de cada tornozelo. Apesar de seus gritos lancinantes, ninguém se atreveu a intervir para não exacerbar a cólera de seu chefe que, com raio ou sem ele, era perfeitamente capaz de distribuir castigos aqui e acolá. Condenados a construir a cidade de Tróia, Poseidon e Apolo foram enviados a servir ao rei Laomedonte, e Hera só pôde ser libertada quando os demais olímpicos, a contragosto e entre as habituais pendengas da família divina, juraram fidelidade e obediência a Zeus.
A história de Hera se dissipou, desde então, nos pequenos assuntos com os quais cada mulher repete na intimidade os ciclos de vingança e revolta marital que, finalmente, dariam margem ao estabelecimento do patriarcado característico de nossa cultura.
(Martha Robles - Livro "Mulheres, Mitos e Deusas"
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