Texto: Lara Moncay
Assim como os deuses gregos tinham passeado entre os céus e a terra, sem deixar de morar em ambos, Mitra é o primeiro deus exclusivamente celestial, morador das alturas inalcançáveis para os mortais, guarda das regiões destinadas às almas que triunfam nas duras provas do último julgamento e condutor do seu trajeto através das sete esferas. Mitra tinha nascido na união entre índios e iranianos, e assim vê-se como aparece entre as linhas dos textos sagrados índios, nos Vedas, mas também o Avesta persa o faz seu, embora custe muito fazer com que o monoteísmo zaratustriano deixe que uma nova figura divina entre no escasso espaço que deixam as duas forças opostas e complementares do bem e do mal, de Ahura e de Ahriman. Mitra já existia na Babilônia conquistada pelos persas e nessa cidade, agora residência de inverno da nova corte, se misturam os seus dados originais com os da antiga divindade babilônica de Shamash, o deus do Sol; também com a influência astronômica e astrológica dos assírios, o céu persa, o céu dos três planos, se enriquece e passa a ser um firmamento composto por sete esferas, incorporando os reinos do Sol, da Lua e dos astros e estrelas, os sete planos por onde hão de transitar as almas, com a sábia e benfeitora guia de Mitra.
Mas Mitra, apesar da sua importância, não é nenhuma divindade principal, é apenas um dos veneráveis, dos santos que acompanham Ahura-Mazda e que estão ao seu lado na sempiterna luta. Mitra tem o seu lugar preciso na montanha fendida, onde se apóia a ponte que leva as boas almas para o céu, porque ele é o deus desse céu, o deus da salvação para as almas dos mortais.
O Trunfo de Mitra
No seu contato com o mundo grego, o deus solar dos assírios e o deus auxiliar dos persas, Mitra, passa a enriquecer-se com os dons pessoais de três deuses olímpicos: Apolo, Hermes e Hélios. Mitra se engrandece e aproxima do modelo clássico ao receber graças divinas de Apolo, deus da juventude, da beleza e das artes; de Hermes, mensageiro dos deuses; de Hélios, o mesmo deus do Sol, por sua vez outra encarnação de Apolo. Depois de ter sido helenizado, o renovado Mitra é levado em triunfo pelos legionários romanos, originários ou destacados, da Ásia Menor para Roma, lá, no coração de um império onde os deuses gregos latinizados estão crescendo, o novo e apaixonante culto a Mitra se assenta com força entre a classe militar e os seus imperadores, muitos deles surgidos da própria milícia legionária, e ao estar protegida por tão influente casta, converte-se num dos principais, construindo-se templos subterrâneos, os mitreus, por todo o império romano, onde se adorava Mitra como o guarda desse universo celestial, matando o touro que, no Avesta, tinha sido criado por Ahura-Mazda e morto por Ahriman, de cujo corpo tem que brotar toda a vida que há sobre a Terra, o touro que é fonte de vida para o reino animal e para o reino vegetal. Com essa invocação de Mitra tauróctone, o deus das almas também se torna divindade da vida que renasce constantemente, da vida que brota estacionalmente. Outras vezes aparece saindo da rocha afundada onde a ponte das almas tem a sua base, leva numa mão a faca com que tem de sacrificar o touro e na outra uma lanterna. Também vemos Mitra saindo entre as folhas de uma árvore, conseguindo que a água, também fonte de vida, brote abundantemente com a sua divina presença.
Os Mitreus
Nos santuários de Mitra, nas grutas artificiais subterrâneas que são os mitreus, se representa uma concepção religiosa independente. O culto de Mitra é um culto misterioso, muito mais atraente e apaixonante do que o já periclitado culto oficial aos muitos e diferentes deuses que se foram assentando no super-povoado panteão romano. Resulta muito indicativo o fato de que os mitreus se vão estendendo centripetamente, dos postos avançados da legião, nos frontes permanentemente abertos, onde existe perigo de invasão, onde está o melhor do exército romano, para o interior do Império, sempre seguindo as linhas militares, para terminar implantando-se em Roma com um caráter muito marcado de culto ao rei, ao imperador. O deus aparece como matador do touro sobre o asse central. Veste uma túnica curta, capa e gorro frígio e, na sua mão direita, está a faca com que mata o touro, enquanto do sangue que brota da ferida do pescoço surge uma mata de espigas.
Sobre a ala central está a abóbada ritualmente perfurada por onde entra a luz, de modo que essa luminária imita as estrelas do céu que está encomendado ao deus, enquanto o Sol, que um dia foi parte da personalidade de Mitra, além da Babilônia, passa a um segundo plano como auxiliar ou acento do poder divino de Mitra, para ser simplesmente um fiel discípulo seu, como o eram os novos acólitos da imaginaria mitraica romana, Cautes e Cautopates, outras duas figuras solares que aparecem como um par de jovens vestidos também com clâmide cingida à cintura e gorro frígio, para que não haja a menor dúvida da sua pertinência ao cortejo mitraico, Cautes com a tocha para acima, como símbolo de juventude, de primavera, de amanhecer; Cautopates com a sua tocha para abaixo, como recordatório da senilidade, do outono e do ocaso.
Os Mistérios de Mitra
Na reserva e exclusividade dos reduzidos mitreus celebrava-se o mistério da vida e ressurreição, o culto mistérico de Mitra, o triunfador sobre a morte e doador de vida, o condutor de almas e o salvador dos humanos. O mistério de Mitra deve reconstruir-se também pelos restos arqueológicos, artísticos, dos mitreus, pois não há mais dados do que aqueles que ficaram gravados em suas paredes. Celebravam os banquetes de união entre os iniciados e também as provas de admissão à iniciação. Essas provas que eram set simbolizavam a passagem da alma humana pelas sete esferas planetárias, como no devido momento instituíram os assírios sobre o culto persa. Os sete graus eram estes:
1.º o corvo
2.º o oculto sob o véu nupcial
3.º o soldado
4.º o leão
5.º o persa
6.º o mensageiro do Sol
7.º o pai
Após as provas correspondentes, umas de piedade, outras de doutrina, outras físicas, após essa passagem pelos sete graus, o fiel podia considerar-se dentro do clã de Mitra, do grupo dos iniciados no culto mistérico, com o tácito diploma de fidelidade e pertinência ao Senhor do céu; porque nestes cultos mistéricos, a ideia era (e continua a ser nas maçonarias e outros ritos iniciáticos e simbólicos) a de fazer passar o iniciado pelas provas de dificuldade crescente, fazendo-o avançar gradualmente pela depuração terreal, antecipando-se às provas após a morte, fazendo no templo o que se supõe que a alma que tivesse passado as sete esferas planetárias da mão de Mitra teria tido que fazer para alcançar a vida eterna.
Mitra se Apaga – Jesus se Acende
A grande festa do renascimento mitraico celebrava-se grandiosamente em Roma no mês de Dezembro, exatamente no dia 25, desde que Júlio César deu o seu visto ao calendário definitivo que teria de reger no seu Império.
César fixou esse dia 25 de dezembro como o dia oficial do solstício de inverno e, anos mais tarde, o imperador Aureliano, no ano 274, fixou o 25 de Dezembro como o dia dedicado a celebrar o nascimento do Sol, quando chegava a data do solstício de inverno e o dia, após ir encurtando-se, começava o seu crescimento que o levaria ao máximo, ao anual e renovado solstício de Verão. Como muito acertadamente aponta Isaac Assimov nos seus estudos comparativos sobre os textos bíblicos e o evangelho, a nova e triunfante igreja cristã, assentada também na mesma Roma que teve que combater e pela qual foi combatida, não teve mais remédio que aceitar a popularidade de Mitra e tentou substituí-lo com um Jesus menino nesse dia, embora tivesse que decorrer uma boa parte do século IV para que se chegasse a considerar o Natal como algo estabelecido. A partir dessa declaração da igreja cristã, da igreja de Jesus, o seu nascimento era o que tinha que celebrar-se anualmente no dia 25 de Dezembro e para não deixar detalhes soltos, "deixou grávida" Maria com uma antecedência de nove meses exatos, de modo que a sua Anunciação se celebraria no dia 25 de Março, quando Isabel estava no seu sexto mês de gravidez de João o Batista três meses (mais ou menos) por atrás da Anunciação, com tanta sorte que o seu calculado nascimento caiu muito perto do solstício de Verão, em 24 de Junho, fazendo com que com a discutida e discutível figura de João Batista, o primo, ou o irmão suposto e não admitido de Jesus, outro suposto Messias, ocupasse o outro grande espaço pagão por onde se podia escapar uma grande parte da nova paróquia tão duramente conquistada, contrapondo com êxito as novas divindades aos mais antigos e assentados cultos.
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