Ainda que inferior em hierarquia a Afrodite, Atena, Ártemis ou Hera, Deméter gozava de uma posição especial no Olimpo, não por sua beleza ou inteligência, mas por representar a primavera, o que a transformara na padroeira das colheitas. Como Hera e Héstia, a deusa do lar doméstico, a deusa dos campos de cevada foi devorada ao nascer por seu pai Cronos e resgatada do ventre do Tempo por Zeus e sua mãe Réia. De sua relação incestuosa com Zeus, teve uma filha que, enquanto donzela, foi chamada Coré, e depois Perséfone, ao ser raptada nas colinas de Elêusis por seu tio Hades, o deus dos infernos.
Alguns dizem que Deméter pariu Dionísio, filho de Zeus; outros que foi Perséfone quem o concebeu no Tártaro, fecundada por Hades transmutado em serpente. No entanto, qualquer relação que se estabeleça entre Dionísio e Dione, a deusa do carvalho, com Io ou com a própria Deméter, deusa dos cereais, ou ainda com Perséfone, deusa da morte, justifica-se facilmente na medida em que o mito dionisíaco originou-se do protótipo de um rei consagrado que era abatido ritualmente pela deusa armada de um raio para ser devorado pela sacerdotisa, durante as cerimônias anuais que se celebravam em sua honra.
A despeito desse provável vínculo com a deidade dos prazeres e do vinho, atribuem-se a Deméter alguns namoros deliciosos, como o que foi protagonizado com Poseidon quando, chorosa e desalentada, vagava em busca de sua filha e ele, transfigurado em um veloz corcel, correu atrás dela não exatamente para lhe proporcionar consolo, mas antes para desfrutar de sua reconhecida paixão.
Sabe-se que Deméter, cansada de indagar aqui e ali sobre o paradeiro da jovem, esqueceu-se de todos os seus flertes e casos amorosos com titãs ou com deuses e pôs-se a pastar, transformada em égua, junto ao gado de um certo Onco, supostamente descendente de Apolo, que reinava em um lugar da Arcádia chamado Onceium. Sendo Poseidon o segundo inventor dos arreios, depois de Atena, o protetor dos equinos e o indubitável precursor das corridas de cavalos, não teve dificuldades para reconhecê-la e imediatamente a cobriu sob a forma de um vigoroso garanhão. Dessa união forçada, como quase todas as empreendidas pelos deuses, nasceram a ninfa equina Despena e Árion, o célebre cavalo selvagem que se costuma associar a Pégaso e aos mananciais de água, ainda que outra versão diga que Pégaso foi gerado por Poseidon com Medusa. Impetuosa como era, a cólera da ultrajada Deméter foi de tais proporções que, desde então, foi adorada na região sob o epíteto de "Deméter Erínia", o que significa em nossa língua "Deméter Furiosa".
Pouca importância teria adquirido Deméter, a mulher de cabeça de égua, se não tivesse sofrido na pessoa de sua filha a agressão de Hades, também membro da primeira geração de olímpicos, gerado por Cronos e Réia, e que, de um dia para outro, decidiu que precisava de uma esposa e, sem deter-se diante de ninguém, tomou a inocente Coré a fim de entronizá-la no Tártaro, o que equivalia a interromper sua existência para fazê-la rainha dos mortos.
A figura de Deméter, apesar do símbolo de fecundidade que a envolve, está rodeada de complicados mistérios. Está relacionada com as fases da lua, com a sucessão das estações e com a consolação da maternidade sofredora. Seus iniciados celebravam ritos em sua honra, talvez associados com os ciclos de fertilidade e como uma forma de desafio às trevas, algo parecido a uma luta incessante contra a morte mediante o reinicio da vida. Hesíodo lhe atribui um filho chamado Pluto, o símbolo da riqueza, fruto de seus amores silvestres com o gigante Iásio, o que fez supor aos mitógrafos que os gregos atribuíssem precisamente à agricultura a única e mais autêntica origem da riqueza.
Deméter, apesar de sua evocação sensual como égua apaixonada e de seus romances campestres com titãs e deuses, encarna uma maternidade tão temerosa e possessiva que até parece não ter sido seu irmão Hades o responsável por sua desolação e por suas maiores vicissitudes, mas sim o fato isolado de que sua filha empreendesse uma aventura sexual com seu tio, sem restrições ao lugar onde finalmente se celebraria o casamento, e que dessa aventura ela decidisse voluntariamente permanecer junto ao amado. O destino fizera Hades reinar no Tártaro, e o amor estava proscrito para ele. Mas o deus já se queixara de que não havia no mundo ou no Olimpo deusa, ninfa ou mulher que concordasse, por bem ou por mal, em compartilhar das profundezas do além-túmulo.
O fascínio de Hades pela donzela de formosos tornozelos quando esta bailava graciosamente sobre as pradarias floridas com suas amigas, as filhas do Oceano, é uma imagem até certo ponto comum nas fábulas gregas. Homero anta em seu Hino a Deméter que as donzelas brincavam contentes, colhiam ramos de açafrão, formosas violetas, lírios, jacintos, rosas e narcisos que a terra havia produzido por vontade de Zeus a fim de cativar as garotas de rostos corados. O que existe de diferente aqui, e o episódio que fortalece o mito, é a atitude da mãe, dessa deusa aparentemente feliz assentada em sua cadeira de ouro, exultante durante suas andanças ocasionais, sempre fecunda e sem tribulações até a hora em que algo íntimo, seu fruto mais precioso, não só lhe é arrancado como raptado da superfície da Terra em uma apavorante carruagem puxada por corcéis negros para transportá-lo aos infernos onde habitavam os mortos.
Chorava Coré em seu cativeiro sombrio, saudosa da vida, e chorava a mãe enquanto a procurava por cada rincão do mundo. As duas jejuavam e chamavam uma pela outra até que, no intuito de prendê-la no Tártaro para o bem de seu amo, o jardineiro iludiu-a e fê-la comer os grãos nefastos da romã dos mortos, os quais a levariam a enamorar-se de Hades até incendiar-se de amor, ainda que o efeito do inferno fosse precisamente o de transformar seu coração em gelo.
Quando a deusa soube que sua garotinha havia desaparecido - assim narrou Homero -, partiu o diadema que usava sobre sua cabeleira divina, recobriu os ombros com um xale sombrio e lançou-se como um pássaro, por terra e por mar, em busca de sua filha perdida. Envelhecia de tristeza, mas ninguém lhe quis contar a verdade. Ninguém se atrevia a confessar que era o deus da morte quem havia raptado a jovem. Não houve pássaro que se dispusesse a levar-lhe uma mensagem consoladora e, desse modo, ela errou durante nove dias e nove noites, erguendo fachos ardentes para iluminar as profundezas das cavernas até que, finalmente, encontrou-se com Hécate que, cheia de compaixão, acabou por sussurrar-lhe a verdade. "Tua filha foi raptada", disse-lhe com voz trêmula. "Por quem?" - indagou a mãe desesperada. "Por Hades", respondeu-lhe a velha e, a princípio, Deméter não a acreditou. "Ele é meu irmão, jamais me faltaria ao respeito de tal maneira."
Para confirmar a notícia, Hécate aconselhou-a a consultar Hélio, o Sol, que tudo vê e tudo recorda desde seu trono no teto dos céus. Convencida finalmente, Deméter se apresentou perante Zeus para reclamar-lhe justiça; mas Hades já se havia adiantado com rogatórias e súplicas perante a assembleia do Olimpo e, a maneira dos políticos de todos os tempos, alegou perante seus irmãos Zeus e Poseidon que também ele merecia ter uma esposa. "Diferentemente de vocês, deidades solares, eu estou condenado a viver nos confins mais obscuros e ali encontro somente mulheres destruídas pela dor. Vocês repartiram entre os dois o céu e o mar. Vocês escolhem à vontade e se divertem com donzelas e com deusas. Eu, ao contrário, reino sobre a paisagem desolada das penumbras e suporto meu cetro em gélida solidão."
Responsável pela justiça, ordenador dos assuntos do Olimpo e do mundo, apresenta-se a Zeus um dilema terrível. Coré é sua filha, Hades seu irmão e Deméter, sua amante, a mãe sofredora; e com nenhum dos três desejava inimizar-se. Confiando na orientação do destino, primeiro enviou Hermes com a missão de fazer com que Hades compreendesse que teria de encontrar outra jovem para desposar, sem provocar tantas contrariedades; logo depois, conversou com Deméter e pediu-lhe compreensão para colocar nas mãos do acaso os argumentos que solucionariam o enredo com equidade. Quanto à sua filha, mandou-a chamar de volta mediante a condição de que não tivesse provado do alimento dos mortos, que Ascálafo, o jardineiro do Tártaro, a tinha feito morder no instante de sua despedida, já nos portões do mundo inferior.
O desfecho ou a chave mítica encontra-se no momento em que Deméter aceita o trato com Zeus e com Hades, depois de se inteirar de que sua Coré já se transformara em Perséfone, apaixonada por Hades e virtual rainha do inferno, pois, a seu próprio pesar, havia comido dos grãos fatais. E foi desse modo que, ainda magoada, a deusa jurou estender sobre o mundo uma paisagem desoladora, reflexo do vazio que sentia na alma, de sua sensação de despojamento, de sua maternidade agredida. Deméter cria o inverno para espelhar sua tristeza. Assombra a Terra com a angústia de árvores sem folhas, campos ressequidos, flores emurchecidas, e multiplica as cenas de homens e animais morrendo esfaimados porque nada pode crescer contra a sua vontade.
Assim, antes que os deuses consigam persuadi-la a bendizer outra vez a Terra a fim de devolver-lhe a fertilidade e o ciclo das colheitas, Deméter vaga como a sombra de sua sombra, banhada em lágrimas e macerada em razão de seu prolongado jejum. Deméter erra pelos campos estéreis, sem rastro de sua frescura nem vestígio de sua fascinante jovialidade. Mãe amargurada, durante seu pesar reprime sua antiga sensualidade; ela mesma se transforma em Hécate e está agora muito distante de se parecer com a amante que agradara a Zeus. Deméter torna-se uma pobre sofredora, encanecida e profundamente marcada pela sensação de impotência que a domina. Em seu rastro, deixa as marcas desoladoras da pena e, tal como se proferisse uma oração, todos a escutam murmurando que nada, salvo o retorno de Coré, seria capaz de reanimá-la.
Sempre carregando um archote, é assim que a mítica Deméter presta seu tributo à morte de Coré e entra em acordo com Zeus que, para agir com plena justiça, decide que a jovem deverá repartir seu tempo entre o mundo dos vivos e o Tártaro. Como pagamento por ver Coré outra vez a seu lado, ainda que somente por alguns meses ao ano, tal como determinara o Pai dos Céus a fim de compensar sua infelicidade, Deméter se compromete a devolver o verdor da Terra durante esse período, tempo suficiente para que possam crescer as sementes; e concorda em fazer dos cultivos o recipiente exato dos ciclos de vazio e de vida. Os meses restantes, quando Perséfone volta a reinar sobre a mansão dos mortos, correspondem à estação hibernal, o período do frio em que o mundo se torna sombrio e desesperançado. No momento em que Perséfone retorna às pradarias, explode a primavera, florescem as plantas e tudo se dispõe para uma nova colheita. O mito conta ainda que, em testemunho de gratidão por haver recobrado sua filha, Deméter presenteou ao rei de Elêusis, filho de Triptólemo, com uma espiga prodigiosa cujas virtudes ele deveria transmitir, viajando em um carro alado, a fim de revelar o segredo de como domesticar a vegetação e difundir a arte da agricultura. Dessa forma, Elêusis, a capital da Ática, foi consagrada a Deméter, porque, segundo o mito, foi de um de seus prados que Hades roubou Coré e donde a própria deusa jurou se vingar criando o inverno e a semeadura da morte, caso os deuses não lhe devolvessem a filha.
Segundo outra versão, Deméter se encontrou com Hécate, a deusa-lua, e juntas foram ver o deus-sol, o poderoso Febo ou Hélio, para que este lhes descrevesse os pormenores do rapto. Ainda que o Sol tenha admitido que testemunhara o feito, não lhes disse onde ocorrera exatamente tampouco quem era o deus responsável.
Diante do silêncio abominável de Hélio, Deméter abandonou o mundo dos deuses, irada e aflita. Àqueles que estavam congregados no Olimpo, jurou nunca mais regressar, nem sequer recordar-se deles. Era desse modo que, durante o festival da semente, a deusa era invocada, velando seu luto às beira de um poço, chamado o Poço da Virgem, esperando ali até que alguém se dispusesse a vir informar-lhe onde poderia encontrar a donzela.
Durante os festivais, costumava-se recordar que Deméter, enquanto permaneceu em Elêusis, aguardando notícias, serviu como uma ama envelhecida em uma mansão próxima ao Poço da Virgem, seu principal santuário, onde se parecia com Hécate na sua velhice, uma Hécate inseparável de Perséfone.
Nenhum camponês ignorava a condenação da terra feita por Deméter. Em um desfile, representava-se a imagem sombria daquele ano em que não brotaria qualquer fruto da terra até que os sofrimentos obrigassem a Zeus e a todas as divindades a irem, uma após outra, suplicar a Deméter que aplacasse sua ira.
Não obstante, Deméter conseguiu que a libertada Perséfone, acompanhada por Hécate, volvesse a seu lado no Olimpo durante os meses primaveris. De volta à glória, a Terra reverdeceu e as flores brotaram com os grãos portadores da vida. É por isso que não são admitidos homens ou donzelas no ritual das tesmofórias, segundo é corroborado pela comédia de Aristófanes, As Tesmoforiantes.
Esse é um dos mistérios relacionados às súplicas erguidas à Deméter pela fecundidade dos cereais, realizadas em Atenas entre os dias 11 e 13 do mês de pianepsion (outubro/novembro), época da colheita, um cerimonial que se apartava da liturgia porque as tesmoforiantes sacrificavam leitões e revolviam seus restos com terra a fim de fomentar-lhe a fertilidade.
Durante aqueles dias, as mulheres dormiam em tendas próximas aos santuários. Não podiam faltar os excessos carnais depois do jejum nem os atos dionisíacos alusivos, talvez, às andanças de Deméter pelas pradarias ou a seus prazerosos encontros sexuais. Entretanto, quase nada restou da essência desse culto. Secreto como era, o tempo levou consigo o mistério. A não ser por indícios trágicos, por algumas pinturas e pelas informações parciais de Xenofonte,não conheceríamos sequer esses elementos tão escassos referentes aos complicados rituais sagrados das mulheres da Grécia em honra de sua deusa.
(Fonte: Livro Mulheres, Mitos e Deusas - Martha Robles)
Òtimo TUDO o q eu precisava!!!
ResponderExcluir