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Durante o período arcaico da humanidade, a grande deusa era o princípio organizador do universo, corporificando as forças da vida, da morte e do renascimento. Ela abarcava não apenas o mundo humano, mas igualmente o reino animal, vegetal, mineral e astral.
Como a Deusa Trina, abarcando a jovem nubente, a mãe madura e a anciã transformadora, ela está na origem da primeira divisão do ano em três períodos distintos, períodos estes marcados pelo sangrar da mulher, pelas fases da lua e pelas estações. Todos estes eventos eram considerados expressões do mesmo fenômeno da vida, as forças cíclicas da criação, preservação e destruição, que mantém o universo em movimento.
Baseado no exemplo da lua, a vida era experienciada como um ciclo de mudanças contínuas. A crescente lua nova se manifesta no reino vegetal como o período primaveril, quando a vida desabrocha em todo seu frescor, continuando sua gradual transformação até atingir seu período de exuberância na lua cheia, ocasião em que também acontecia a maturação dos cereais cultivados. Completado seu período de plenitude, continua sua trajetória, desta vez minguando em direção à lua escura, quando então a vida na natureza descansa e se renova, para ressurgir como crescente lua nova, dando início a mais um ciclo.
No viver feminino, este ciclo se expressa no menstruar, definindo as três fases da vida de uma mulher: menarca, menstruação e menopausa. Mensalmente, a mulher percorre as fases da lua, com ênfase em seus dois picos: a lua cheia da ovulação, quando a energia se dedica à maturação geradora, e a lua nova da menstruação, período em que a energia se recolhe para processar a renovação nas profundezas do ser.
Em Seu Sangue é Ouro, Lara Owen escreve que "o ciclo menstrual é em si um processo alquímico, durante o qual toda mulher que sangra passa por uma transformação interna. Menstruar significa viver através de uma transmutação cíclica, em que o passado é derramado e o novo é acolhido. A experimentação desta transformação através do ritual consciente desperta-nos para a nossa ligação com os ciclos que ocorrem a nossa volta e para o nosso relacionamento com toda a vida.”
Desde o neolítico, os povos agrários marcavam a passagem entre os períodos sazonais com festivais de fertilidade, ocasião em que ofertavam porcos ou leitões às forças naturais, em troca pelas bênçãos de uma boa colheita. Convivendo com os grupos humanos há mais de 7000 anos, os javalis ou porcos selvagens foram os primeiros animais a serem domesticados. Devido à sua grande capacidade procriadora, a javalina ou porca se tornou um dos mais antigos símbolos de fertilidade. A palavra grega para porco é hys, da qual deriva hystera, útero. Seu correspondente latino é sus, designativo da espécie suína.
A deusa-porca na tradição grega
Os rituais de fertilidade que conhecemos em mais detalhes são aqueles que chegaram até nós por intermédio da mitologia e da história grega. Como a grande deusa dos tempos arcaicos, era Deméter quem presidia os rituais de fertilidade, que eram celebrados ao longo do ano, em harmonia com os ciclos da terra. Como deusa-porca, leitões lhe eram oferecidos por ocasião dos rituais.
Na primavera eram realizadas as festas orgiásticas, que celebravam a sexualidade como a fonte da vida. Remetem aos primordiais ritos de fertilidade, em que casais copulavam nos campos, para ativar a fecundidade da terra. Em Argos, homens e mulheres participavam do festival conhecido como Hystéria, dedicado a Afrodite como o aspecto nubente da deusa trina.
No início do período seco do verão e após o encerramento da colheita, acontecia o festival Skira, marcando o momento em que os leitões sacrificiais iniciavam sua viagem ao mundo profundo, para um período de inatividade e renovação. “Em um ato ritual, leitões vivos eram jogados em uma fenda, em cujo fundo habitam as serpentes”, escreve Jutta Voss emDas Schwarzmond Tabu [O Tabu da Lua Negra]. Lá eles apodreciam durante o período seco, seus restos sendo retirados durante as Tesmofórias.
Rituais menstruais de antiguidade imemorial, as Tesmofórias eram exclusivas das mulheres. Devido ao caráter conservador das mulheres e à atitude supersticiosa dos homens diante destes ritos, “eles foram preservados em pureza prístina, até os dias mais tardios”, escreve Jane Harrison, em Prolegomena to the Study of Greek Religion[Introdução ao Estudo da Religião Grega]. Pela mesma razão, apenas relatos secundários a respeito do que acontecia de fato chegaram a nós.
As Tesmofórias eram realizadas durante o outono, quando as mulheres se aventuravam pelas fendas profundas em que habitavam as divindades ctônicas, as grandes serpentes, levando leitões como oferendas e trazendo consigo os restos apodrecidos dos porcos oferecidos durante a Skira. Estes restos eram misturados com as sementes a serem plantadas. Após terem se purificado, as mulheres permaneciam em jejum, recolhidas sobre um leito de plantas, ou sentadas na terra. Passados os três dias do ritual, elas levavam as sementes misturadas com a carne suína, e com sangue menstrual de acordo com alguns, para serem plantadas nos campos especialmente preparados, na esperança de uma boa colheita.
"Cada ano, no tempo do plantio, as mulheres se reuniam para relembrar o mistério sagrado da semente na terra e da semente em seus corpos. Ninguém sabe dos começos do ritual. Restos de oferendas similares às usadas nas Tesmofórias foram encontrados em todas as partes da Europa Antiga, datando de seis mil antes do tempo comum”, escreve Betty De Shong Meador, em Uncursing de Dark [Des-amaldiçoando o Escuro].
Diferentemente dos festivais mais tardios para a promoção da fertilidade, as Tesmofórias não eram dedicadas a alguma divindade abstrata, mas à terra em si, tendo ficado isentas da contaminação pelos ritos olímpicos. Receberam, contudo, um novo impulso religioso e geraram a cerimônia mais importante da Grécia Antiga: os extáticos Mistérios Eleusinos, durante os quais os participantes entravam em contato direto com as deusas Deméter e Perséfone.
Assim como as Tesmofórias, também os Mistérios Eleusinos requeriam um compromisso com o sigilo, de modo que também chegam até nós apenas os fragmentos visíveis do que realmente acontecia nesta cerimônia, cujo acontecimento central permanece oculto. Certo é que eles eram realizados em honra de mãe e filha, dois aspectos inseparáveis da grande deusa, que engloba não somente o aspecto feminino da terra, mas também a mutabilidade da lua.
Em Eleusis, escreve Voss, enquanto Deméter como a deusa do grão representa o lado luminoso, Perséfone é a deusa-porca, o lado escuro, que desce às profundezas para renovar a vida. Como deusa do mundo profundo, ela é a terra escura que traz os frutos e abriga os mortos. No ciclo menstrual, Deméter representa a fase ovulatória, enquanto Perséfone representa a fase sanguínea, explicitada nas sementes de romã, fruta símbolo do sangrar mensal e do mundo profundo.
Ritos de fertilidade dos povos germânicos
Também entre as tribos germânicas, o ano era dividido em três estações distintas: primavera, verão e inverno, cuja transição era marcada por rituais realizados imediatamente antes do plantio no meio do inverno, ao surgir dos primeiros brotos no início da primavera e no final do verão, quando concluíam o ano agrário após a colheita, a debulha e o armazenamento dos grãos.
Reunidas sob a designação de ‘germânicos’ pelos romanos, eram tribos independentes, unidas basicamente por uma língua comum e uma religião com características xamânicas, que cultuavam igualmente deusas e deuses.
As tribos que viviam a oeste do Rio Reno e em torno do Mar Báltico eram essencialmente agrárias e viviam em aldeias auto-sustentáveis. Eles veneravam um pequeno grupo de divindades conhecidas como os Vanes (vanir), um estrato antigo de pacíficas divindades da natureza, responsáveis pela fertilidade dos campos, protetoras dos lavradores, marinheiros e pescadores. Eram descendentes da Deusa Nerthus, a própria terra. Além dos frutos da terra e da prole animal e humana, os Vanes também ofereciam conselho aos seres humanos, comunicando-se com seus devotos por meio da habilidade mágica e visionária conhecida como Seidr.
Os rituais de fertilidade destas tribos tinham por objetivo promover vida nova e trazer abundância aos campos cultivados, aos animais e aos lares. Apesar das deusas dos Vanes terem florescido sob diversos nomes, nas diversas partes da Escandinávia, por trás de todas elas se encontra a terra-mãe, a grande deusa que ajuda as mulheres e as meninas por ocasião do casamento e do parto, estabelecendo o destino das crianças. Mulheres e homens participavam plenamente de seus ritos relacionados com a fertilidade da terra, com o criar uma família e o casamento.
Na mitologia mais tardia, a grande deusa nórdica emerge na figura de Freiá, incorporando basicamente três funções: a de grande feiticeira e sacerdotisa sacrificial, a de grande Valquíria que recolhe os mortos no campo de batalha e a de deusa do amor e da fertilidade. Reunindo em si estas três funções, escreve Britt-Mari Näsström em Freyja - The Great Goddess of the North [Freiá – A Grande Deusa do Norte], ela atua como a contraparte dos deuses masculinos, cada um dos quais apenas incorpora uma única função. Freiá significa simplesmente ‘Senhora’. Como deusa da fertilidade, contudo, ela também é chamada de Sýs, ‘a porca’. Tem como montaria um javali sagrado chamado de Hildisvini.
Para estes povos antigos, os mitos e ritos de fertilidade não se referiam apenas ao processo agrário da semente que renasce, escreve Hilda Ellis Davidson em Roles of the Northern Goddess [Funções da Deusa Nórdica], “mas incluem as esperanças e os medos associados com os principais ritos de passagem - nascimento, casamento e morte - o acasalamento de homens e mulheres, o parir e perder crianças, e a necessidade de sacrifício”, a fim de que a vida da comunidade possa continuar.
A deusa-porca na tradição hindu
Na Índia, muito antes do predomínio da tradição védica, vamos encontrar a deusa-porca intimamente associada com a menstruação. Filha da Deusa Primal do Oceano de Sangue, Vajravahari, a Porca Adamantina, rege as divindades femininas iradas, que dançam o campo energético do ciclo menstrual. Como a dançante dakini vermelha, sua primeira representação data do primeiro milênio antes do tempo comum e a mostra com cabeça de porca, uma língua pendendo de sua boca e trazendo no joelho uma criança. Remete à figura de Cali, com seus dentes suínos e sua língua vermelha.
A origem dos rituais de fertilidade da tradição hindu retrocede ao período da civilização de Harapa e Mohenjo-Daro, que floresceu no Vale do Indo por volta do terceiro milênio antes do tempo comum. Um sinete encontrado em Harapa mostra um devoto diante de uma figura feminina e uma fila de acompanhantes com caudas de porco. Entre as descobertas arqueológicas estão inúmeras estatuetas femininas, sempre acompanhadas de pedras em forma de falos eretos (lingam) e pedras circulares com buracos no meio (yoni) que, ainda hoje, são os objetos mais comuns de veneração. É provável que, na origem, fossem apenas os instrumentos usados pelas mulheres para trabalhar a terra.
Na Índia pré-védica, como em todas as culturas agrárias, a fertilidade dos campos estava associada com o poder das mulheres parirem crianças, poder associado com o sangrar mensal. Ainda hoje, nas cerimônias de casamento, a noiva é designada como o ‘campo a ser semeado’ e o noivo é instado a ‘depositar sua semente no campo’. E apesar do advento da cultura védica ter relegado a deusa-terra a um segundo plano, ela ainda é invocada nos hinos védicos como Prthivi ou Mãe Terra: “Seu verão, oh terra, sua estação chuvosa, seu outono, inverno, tenra primavera e primavera; suas estações anuais decretadas, seus dias e noites nos forneçam leite”, canta um hino do Atharvaveda.
Na tradição vedo-bramânica posterior, tão avessa ao sangrar feminino, Varahi, a deusa-porca, foi incluída entre um grupo de deusas conhecidas como Matrikas, as mães, descritas como um grupo de deusas ferozes e terríveis, que anseiam por sangue, principalmente de recém-nascidos. Tudo aponta para o fato destas deusas pertencerem ao universo religioso dos povos pré-arianos, indígenas do território indiano. Sua força está relacionada com o poder arcaico do sangrar, associado com a fertilidade da terra e das mulheres.
Não sendo possível eliminar sua simbologia, foi necessário colocá-la sob o domínio de uma divindade masculina. Assim, em uma de suas encarnações, o deus Vishnu nasce como javali para resgatar a mãe-terra que está sucumbindo ao peso do excesso populacional. Como Varaha, o javali sagrado, ele arrebata a terra das profundezas do mar cósmico, para sustentá-la na superfície. As versões posteriores deste mito desvirtuam a função fertilizadora original do javali, enfatizando seu aspecto destrutivo. Relata o Kalika Purana que, após trazer a terra à superfície, Varaha copula com ela. Mas pelo fato dela estar menstruada e, portanto, inadequada para o embrião com o qual foi impregnada, este teria uma natureza demoníaca, ou seja, seria um Asura.
O termo asura é usado na linguagem védica tanto para os deuses como para seus inimigos, significando espiritual, incorpóreo, divino. Provavelmente era a designação dada aos povos nativos, por eles conquistados. Na literatura purânica posterior, é usado quase exclusivamente no sentido de um espírito mau, um oponente dos deuses vedo-bramânicos. Os demônios são, em quase todas as mitologias, filhos da mãe arcaica, sobrepujada pelo poderio masculino.
E assim, com o passar do tempo e o avanço do patriarcado, o poder do sangue menstrual, que nos primórdios era sagrado e associado à fertilidade da terra e ao poder das mulheres, passa a ser considerado impuro. E tudo que se relaciona com a deusa escura, representando o aspecto invernal da deusa trina, foi relegado às profundezas inconscientes, onde nos aguarda e de onde nos chama, para resgatarmos nosso poder inerente.
Monika von Koss em maio de 2010
fonte do texto: http://www.monikavonkoss.com.br/site/indice-de-artigos/143-a-deusa-porca-e-os-rituais-de-fertilidade
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