Copyright © Monika von Koss
Com seu aspecto simples de um líquido branco, o leite é um dos alimentos mais complexos da natureza. Representa um equilíbrio entre a solução aquosa, emulsão fina de glóbulos de gordura e uma suspensão coloidal de proteínas com algumas partículas gasosas - gás carbônico e oxigênio.
No alvorecer da humanidade, pequenos grupos humanos vagavam pela terra em busca de alimento. Alimentavam-se principalmente de vegetais, frutas, raízes e animais de pequeno porte. Quando grupos humanos se deslocaram para regiões mais ao norte, onde a vegetação é menos abundante e o clima mais severo, surgiu a necessidade de caçar animais de grande porte que, como eles próprios, se deslocavam livremente em busca de pastagens. Habitando um mundo ainda unitário, estes grupos humanos partilhavam os recursos alimentares com outros animais, carnívoros ou não.
Destes tempos remotos, nossos ancestrais nos legaram pinturas rupestres, algumas datando de 30 milênios. As inscrições em cavernas do paleolítico, abundantes em figuras de animais, entre eles cavalos, bisontes, mamutes e até rinocerontes, além de uma infinidade de pequenas estatuetas femininas encontradas em sítios arqueológicos, nos informam que estes grupos, que se deslocavam em busca de alimento, cultuavam uma divindade feminina, que foi denominada simplesmente de Senhora dos Animais. Escreve Joseph Campbell em As Máscaras de Deus, que “a deusa que acabou de se revelar no próprio alvorecer do primeiro dia da nossa espécie já estava acompanhada de sua bem conhecida corte” de animais,definindo sua personalidade e exemplificando seu poder.
A posição de destaque da deusa como Senhora dos Animais é expressa por sua dimensão com relação às demais figuras que a acompanham, como pode ser visto em uma cena na caverna de Lascaux, na França, onde ela aparece acima de três cavalos que, juntos, correspondem ao tamanho dela. Além disso, as figuras femininas ocupam o centro das representações, indicando que os símbolos femininos desempenhavam um papel central na concepção de mundo destes grupos humanos.
Com o tempo, eles deixaram de lado a caça e adotaram um modo de vida pastoril. O primeiro passo em direção a esta mudança, escreve Humberto Maturana em Amar e Brincar, “foi a operação inconsciente que constitui a apropriação”, em que uma família humana definiu uma manada como sua propriedade, impedindo o acesso de outros animais e famílias humanas a esta fonte de alimento.
A perda da liberdade dos animais de manadas, ao serem domesticados e transformados em animais de rebanho, teve um efeito profundo também na vida dos humanos, alterando sua visão de mundo, suas emoções, suas crenças. Juntamente com o emocionar característico de uma postura de apropriação, diz Maturana, surgem emoções como a inimizade, a valorização da procriação como fonte de riqueza e poder, a definição de hierarquias e regras de obediência. A procriação animal teve seus reflexos na posição das mulheres como procriadoras, que também passaram a ser controladas pelos homens, donos do rebanho. Estavam plantadas as raízes do patriarcado.
Assimilada à cultura pastoril, encontramos inicialmente a Senhora dos Animais como a deusa-vaca amamentando seu bezerro. Mas, se nas imagens pintadas nas paredes das cavernas do paleolítico, a ênfase recai sobre a grande deusa-mãe, à medida que o pastoreio se impõe como cultura predominante, seus mitos se tornam menos notáveis, afirma Buffie Johnson em The Lady of the Beasts, por datarem de tempos anteriores à escrita, tendo sido alterados pelas religiões posteriores, até se tornarem quase irreconhecíveis.
Apesar disto, em praticamente todas as civilizações antigas, vamos encontrar uma íntima relação entre os bovinos e os seres humanos, com a vaca fornecendo o leite e o boi dando sua força nas atividades de tração e aração. Composta de grandes pastadores, a triboBovini inclui animais de significativa importância econômica, como gado doméstico, o búfalo, o iaque, assim como parentes asiáticos menores, e grandes bovinos selvagens como o búfalo-africano e o bisonte americano.
Surabhi – a deusa-vaca hindu
Na civilização védica da Índia milenar, essa integração entre humanos e bovinos tornou-se uma das características principais da cultura. Nos Vedas, textos sagrados hindus, vamos encontrar a mesma palavra para designar a vaca e o planeta terra: a palavra sânscrita ‘gau.’
O mais antigo de todos os livros sagrados, o Rig Veda, é um livro de homens sobre questões masculinas, em um mundo dominado por homens, escreve Wendy Doniger O’Flaherty em The Rig Veda. Uma Antologia. Nele, as deusas não têm uma posição de destaque e as mulheres são importantes enquanto coisas a serem possuídas, como gado. E apesar do leite ser o símbolo primário da procriação, as figuras procriadoras são homens.
Mesmo assim, vamos encontrar a deusa-vaca Surabhi como a fonte de leite e coalho, uma das grandes forças criadoras do universo. Em Filosofias da Índia, Heinrich Zimmer afirma que o “material divino, que compõem o universo vivo e suas criaturas, é revelado como alimento e sua porção manifestada é apenas o produto de uma única ordenha da sublime fonte, a grande vaca malhada.” A idéia do alimento como o princípio supremo, o material divino que compõe o universo, é exposto no Yajur-Veda: “Eu, o alimento, sou a nuvem que toveja e chove. / Eles [os seres] alimentam-se de mim. Eu me alimento de tudo. / Eu sou a real essência do universo, imortal. / Por minha força, todos os sóis do céu estão acesos.”
Nos Vedas, como em todas as civilizações indo-europeias, escreve O’Flaherty em Women, Androgynes and Other Mythical Beasts [Mulheres, Andróginos e Outros Animais Míticos], o gado é a medida de riqueza e o símbolo de tudo que se deseja possuir. O leite, como alimento básico, é também a origem da vida, a seiva vital denominada de Soma, a substância tirada do oceano de leite primordial, oriunda da vaca mítica, que proporciona abundância e realiza todos os desejos dos seres humanos.
Como a vaca mítica, Surabhi remete à grande deusa da vida e da morte, que está na origem do universo. No Atharva Veda lemos que Prithu, filho do Rei Vena, ordenhou a vaca da abundância, usando para isto o primeiro ser humano, na função do bezerro. Além do leite, a ordenha da vaca também forneceu o cultivo da terra e o próprio grão. Mais do que alimento, dela também surgem, por meio da ordenha, os grandes conflitos que devem ter se manifestado na vida destes povos pastores, pois esta mesma vaca foi ordenhada pelos demônios, que tiraram dela a ilusão. Depois, os deuses a ordenharam para tirar dela força. Finalmente, ela foi ordenhada pelas serpentes, que tiraram dela veneno.
Se você quiser ter sucesso, prosperidade, expansão e liberdade, aconselha o capítulo 49 do Nono Livro do Devi Bhagavatam, entoe seu mantra: “Om Surabhyai namah”, especialmente na manhã do dia seguinte à lua nova de outubro. Pois Surabhi é a Mãe do Mundo como deusa-vaca, que realiza os desejos de seus devotos e purifica todo o universo com seu leite que, mais doce do que o néctar, previne o nascimento e a morte!
Audumla – a deusa-vaca nórdica
Também entre os povos nórdicos, vamos encontrar a deusa-vaca como ancestral da vida e símbolo da fecundidade. De seu úbere fluíram os quatro rios primordiais, os quatro jorros de leite, que alimentaram a mais antiga raça de seres. Relata o poema éddico Voluspá [A profecia da Sábia] que, no início, havia frio e escuridão no norte, calor e luminosidade no sul, e entre eles havia apenas um grande precipício vazio, chamado Ginnungagap. Nesses tempos primordiais, não havia nem céu nem terra, nem deuses e nem um único tufo de grama.
A região ao norte, Niflheim, era o lugar da neblina e do frio, de cuja fonte central afluíam onze rios salgados e venenosos, que se lançavam com estrondo no precipício, onde se solidificavam como pedras congeladas. Por cima de tudo se depositava a espuma em forma de geada.
Na região ao sul, Muspellheim, ardia o fogo em labaredas, que lançavam faíscas no precipício, suavizando o frio. Ventos quentes derretiam o gelo e havia um incessante assobiar, pingar e chuviscar, até que os pingos, vivificados pela força do fogo, formaram um ser primordial, o gigante de gelo Ymir.
E enquanto o calor continuava a derreter o gelo, eis que da geada surge uma vaca sem cornos, abundante em leite, do qual se alimentou Ymir. A própria vaca primordial, Audumla, se nutria dos blocos salgados de gelo. Com seu leite abundante, ela alimentou não apenas Ymir, mas também os demais gigantes e seres divinos.
Hathor – a deusa-vaca egípcia
No Egito, vamos encontrar a deusa-vaca no mais antigo documento histórico que registra a passagem da pré-história para o tempo histórico, dominado pelos faraós. A Paleta de Narmer é dedicada a Hórus como filho de Hathor, que aparece em seus quatro cantos como a cabeça da deusa-vaca. “Você é um filho da Grande Vaca Selvagem. Ela te concebe, ela te gesta, ela te coloca entre suas asas”, lemos nos Textos das Pirâmides.
A civilização egípcia parece ter surgido da confluência de várias culturas, cuja formação ainda é alvo de controvérsias.
Sabe-se que, por volta de 10 mil antes do tempo comum, tribos nômades europeias entraram na então vicejante savana africana, por uma ponte entre a península itálica e o norte da África, indo no encalço das manadas. Com a mudança do clima e a formação do deserto, teriam se deslocado em direção ao delta do Nilo, onde se estabeleceram por volta de 5000 antes do tempo comum.
Inscrições rupestres, descobertas em uma face de rocha de um platô hoje quase inacessível no deserto do Saara, testemunham sua passagem. Então uma savana florescente, em torno de 7000 a.t.c., as inscrições mostram a deusa cornuda, que aparece posteriormente nos Textos das Pirâmides simplesmente como ‘A Grande Ela’. A mais antiga divindade do Egito arcaico, ela continua presente na posterior era faraônica, como os cornos da vaca que portam o sol, representação comum das deusas egípcias em seu aspecto materno.
Na mesma época, grupos pastoris vindos do Crescente Fértil e seguindo pela linha costeira do Mediterrâneo cruzaram o Sinai e entraram no delta do Rio Nilo, trazendo com eles gado e um tipo de trigo duro vermelho, previamente desconhecido no continente africano.
Ao mesmo tempo, seguindo os afluentes do Nilo na direção norte, tribos oriundas do Sudão e da Etiópia trouxeram consigo uma agricultura insipiente, consistindo em espalhar sementes em lugares férteis e retornando depois para colher os grãos. Também trouxeram uma deusa celeste, conhecida como a Deusa Pássaro Dançante que, provavelmente, está na origem do mito das águas primordiais, responsáveis pelas cheias do Rio Nilo. A fonte destas águas são as chuvas torrenciais que caem do céu na Núbia, mais especificamente nas altas montanhas da Etiópia, em torno do lago Tana.
Inicialmente uma série de pequenas províncias localizadas ao longo do Rio Nilo, cada qual com suas próprias divindades, foi apenas por volta de 3000 antes do tempo comum, quando uma nova leva migratória veio do leste através de uma passagem nas montanhas perto de Abidos, que surge o Egito dinástico.
Hathor parece ser a fusão de várias deusas primordiais. Em sua forma de vaca, ela cria a via Láctea de seu úbere, de onde também surgem as águas primordiais que alimentam o transbordamento do Nilo e, com isto, todo o povo egípcio. Como deusa de países estrangeiros montanhosos ou desérticos, parece remeter a Ninhursaga, a grande mãe primordial do panteão sumeriano. Como a Grande Mãe da Vida e da Morte, ela emerge da árvore para nutrir os mortos. Ela é a Grande Amorosa, a deusa-vaca que fornece amparo, cura e renascimento.
Apesar dos mitos da deusa-vaca terem sido distorcidos e apagados, os cornos da vaca continuam transbordando com os frutos da terra, símbolo de fertilidade e abundância, como mostra a cornucópia, um dos emblemas romanos favoritos da deusa-mãe.
Monika von Koss em janeiro de 2010
fonte do texto: http://www.monikavonkoss.com.br/site/indice-de-artigos/132-a-grande-deusa-vaca
Nenhum comentário:
Postar um comentário